23 de mar. de 2004

Pra cá

segunda feira, 2:13 AM

- Alô.
(Elena não diz nada)
- Alô.
(Elena sorri e não diz nada)
- Fala, Elena.
- Oi. Desculpe. É que eu achei que você não fosse atender.
- Como assim?
- Ah. Já é tarde... É segunda feira... Achei que você estivesse dormindo.
- Então você me ligou, mas não queria que eu atendesse?
- Ah. Não sei. Eu queria que você acordasse amanhã e visse que eu tinha te ligado. Só isso.

(Elena sabia que não precisava dizer mais nada. Ele já havia entendido.)

11 de mar. de 2004

Envenenados


Há muito tempo não conversávamos desse jeito. É certo que nunca fomos grandes amigos, mas antes mesmo desse dia já havíamos tido conversas inesquecíveis. E vivido momentos inesquecíveis. Descobertas, aventuras, vexames. Um dia passado ao lado do outro era sempre memorável. Mas sendo a vida irônica como é, acabamos sendo separados. Por meses. É inegável que aqueles foram bons meses para ambos. Inegável também é que aquela distância tornava cada raro encontro ainda mais prazeroso. Algumas palavras trocadas e já ficávamos satisfeitos. Então, nesse dia, depois de meses, o acaso nos uniu. De uma situação banal ressurgiu ainda mais plena aquela antiga relação, quando sobre nós já não atuavam mais as antigas distrações. A bebida, as afinidades, os desejos. Horas se passaram. Diversas histórias foram narradas. Era tarde e seria natural que nos despedíssemos. Olhamo-nos um ao outro.

Estávamos ambos fatigados, mas não queríamos perder o veneno desse dia. O sono aparecia-nos como uma fuga à hora do perigo, e tínhamos vergonha de ir para a cama.


9 de mar. de 2004

Eis nossa obra


Observá-lo era muito fácil: quanto mais alto, mais exposto. Durante anos, todos os seus esforços eram rumo ao alto, todos os seus artifícios. E eram muitos os artifícios e se estendiam a todos. Não havia limite algum. Princípio algum. O fim era bem claro, o tempo todo.

Ele flutuava porque já não havia onde pisar. E muito menos onde se agarrar. Aliás, as suas mãos estavam sempre ocupadas, assim como os seus olhos e a sua mente. Estavam todos a serviço. Em busca de um lugar onde pudesse ser mais visto, ainda que com menos nitidez. Fazendo o que fosse preciso para cativar os outros:

apaixonar-se sempre
amar sempre, a todos
ser bom e generoso, sempre
simpático também
cativante, afinal

Ele parecia descer, mas essencialmente continuava no alto, entre nobrezas, amores, genialidades, honras, realizações. Tudo muito cheio de pompa, de valor. Todos os seus gestos soavam como favores. Tudo descia dele com muito mais força, trazia consigo o peso da gravidade. Isso tornava-o insuportável.

Ao descer, várias vezes apoiou-se em meus ombros. Até o dia em que a minha cabeça não estava lá, nem as minhas pequenas verdades instantâneas.

Ele acaba de cair no chão. Mesmo no chão ele flutua, não é capaz de misturar-se. Está imóvel. Não há, há muito tempo, ninguém perto dele, ninguém que obstrua a minha visão. Assim, continua muito fácil observá-lo: nenhum vestígio de paz por perto.