21 de nov. de 2008

Desespero


Homero escolheu ser taxista porque era bom no volante e também porque gostava de conversar. Mas desde o dia em que precisou vender o táxi as coisas desandaram. Não era a primeira vez que ele trabalhava como motorista particular, mas nunca havia sido proibido de circular pelas áreas comuns do prédio nos momentos em que a patroa estava em casa. Por conta disso encarou com um certo desespero o fato de passar grande parte do dia sentado, sozinho e em silêncio, dentro de um carro estacionado em uma garagem. Quis dizer a patroa que aquilo era falta de respeito, mas não pôde porque precisava do emprego.

26 de out. de 2008

Travessia


Romeu tinha apenas onze anos e vivia se espantando com o mundo. Esforçava-se para entender o funcionamento das coisas, mas a cada dia aumentava mais a sua impressão de que, do mundo, sabia e servia pra muito pouca coisa. A impressão só dava sossego nas temporadas que passava na casa da avó. Era na cidade dela que ele se revelava um ótimo atravessador de ruas, acompanhando a avó e todas as suas amigas naquelas travessias que, para ele, pareciam as coisas mais simples e prazerosas da vida.

12 de out. de 2008

Amontoado


Bernardo assistiu a uma peça de teatro e desde então uma frase andava ecoando na sua cabeça: como é que pode se transformar num amontoado de tarefas a vida da gente? Era uma frase relativamente simples, mas aquilo parecia organizar todos os conflitos que o rodeavam nos últimos tempos. O rapaz, que já não era menino há alguns pares de anos, custava a enfrentar a vida adulta e a série de tarefas que diariamente se impunham à sua vida, quisesse ele ou não. As tarefas vinham de todos os lados, não podia olhar de rabo de olho pra um canto que, pronto, de lá aparecia uma nova tarefa.

15 de set. de 2008

Janela aberta


Martin vivia em um dos bairros mais quentes da cidade, em uma das cidades mais quentes do país. Naquele fim de semana herdou da avó um velho aparelho de ar condicionado e pensou que o presente lhe serviria como fiel companheiro para o resto da vida. Na segunda-feira seguinte, encontrou-se com o vizinho do 302 no elevador. O vizinho tinha olheiras devastadoras e queixava-se de um estranho zumbido que vinha atormentando suas noites, há dias. Martin se fez de desentendido, mas voltou a dormir com a janela aberta.

27 de ago. de 2008

A causa maior


Fabiana sonhava em ser juíza para tornar as coisas mais iguais entre as pessoas. Enquanto não passava no concurso, dirigia seu carro 1.0 e aproveitava qualquer oportunidade de fazer justiça no trânsito. Bem perto do escritório onde trabalhava, havia uma subida que diariamente desafiava as forças do seu automóvel. Logo atrás dele, os motoristas dos carros maiores precisavam se segurar e torcer para que Fabiana conseguisse chegar ao topo do morro. Ela, é claro, engrossava a torcida, mas acima de tudo enxergava naquela situação uma metáfora do mundo em que queria viver.

8 de jul. de 2008

Improviso


Leonardo tinha receio de entrar na faculdade pois de forma alguma lhe interessava tornar-se técnico ou especialista em qualquer coisa. Conhecia alguns técnicos envolvidos em projetos importantes, em questões seríssimas, e às vezes tinha a impressão de que os técnicos se deixavam levar pelo cotidiano. Que acabavam tratando os seus projetos e campos de conhecimento como as coisas mais importantes da vida. Leonardo resistia e pensava o contrário. Pensava que para as coisas importantes da vida, não há técnica que oriente o pensamento e a ação.

7 de jul. de 2008

Gente simples


Decidi tornar-me independente de tal forma que minha independência não ofenda a ninguém; de ter um orgulho terno e secreto; de dormir sem preocupações, evitando a bebida, preparando minhas próprias humildes refeições; de não ter amigos ilustres ou pomposos; de não olhar para mulheres, jornais ou procurar honrarias; de associar-me somente com as almas mais eleitas e se não encontrar quem me agrade especialmente, estar então com gente simples.

7 de jun. de 2008

No fundo


Sérgio já tinha todo o material necessário para construir o resto da casa. Ele já sabia que o novo quarto seria só pra ele. Sabia que quando o cômodo ficasse pronto ele poderia abandonar o sofá da sala e viver como se deve. Sabia, mas não conseguia deixar de ocupar seus fins de semana com o novo amor. Não tinha coragem de fazer diferente e não achava que valia a pena deixar de viver aquele sentimento só porque os tijolos se acumulavam no fundo da casa.

2 de jun. de 2008

Novo amor


Henrique trabalhava na estação rodoviária há apenas três meses, mas já traçava novos planos. Depois da terça-feira em que atendeu uma cliente encantadora, passou a levar para o trabalho uma pequena mala com lençol, toalha de banho e algumas peças de roupa. Queria estar pronto para largar o emprego a qualquer momento e comprar para si mesmo um assento no próximo ônibus que lhe parecesse promessa de novo amor.

28 de abr. de 2008

Liberdade


Jaqueline enxergava o mundo através de uma janela bem pequena, que definia a fronteira entre a área do xerox e o resto da universidade. Nos primeiros dias de trabalho já havia reparado que mesmo os olhos das pessoas mais educadas costumavam desviar dos seus. Resolveu tirar proveito da indiferença geral e, vez ou outra, divertia-se ao ostentar um belo bigode português durante todo o expediente.

25 de abr. de 2008

Vida doce


Carmem queria ser atriz, desde pequena. Queria viver na Itália por um tempo, queria morar num apartamento de frente para o mar. Queria, mas contentava-se com férias no exterior uma vez por ano. Quando lhe perguntavam sobre a vontade de ser atriz, ela devolvia um sorriso amarelo e desconversava. Da janela do restaurante, Carmem enxergava a mesma rua de sempre e esforçava-se para não amargar diante de todas as coisas que não haviam acontecido.

16 de abr. de 2008

Evoluindo



Gosto de saber se está todo mundo bem, correndo atrás dos seus desejos, evoluindo.

Patrícia Pillar

7 de abr. de 2008

Não tinha nada


Lívia sentia um aperto na barriga a cada manhã, sempre que cruzava a porta da rua. Morava sozinha há pouco tempo e ainda não tinha se acostumado a abandonar a casa a própria sorte, diariamente. Sabia que era estranho pensar nisso, mas não havia nada que lhe garantisse que a casa estaria no mesmo lugar quando chegasse do trabalho. Por conta dessa aflição, nunca aceitava tomar uma cerveja depois do expediente. Voltava correndo para conferir se estava tudo em ordem, pedia uma pizza e só punha os pés fora de casa no dia seguinte.

2 de abr. de 2008

Até o fim


Idalina desfilava na ala das baianas há mais de dez anos e esse era, sem dúvida, um dos maiores prazeres da sua vida. Outro grande prazer era tomar a primeira cerveja depois do desfile: era apenas o anúncio das muitas outras garrafas que viriam até a linha 126 voltar a passar. Ela fazia questão de aproveitar o veneno daquela noite até o fim. Liderava a mesa das baianas, ainda vestidas a caráter, e já criava tradição no bar em frente ao ponto de ônibus.