4 de dez. de 2003

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Muitas coisas mudaram em mim depois da morte da minha filha. Foi como uma viagem em que você vai num bote em águas muito agitadas e precisa ir jogando ao mar todo o sobrepeso. Começa a se desprender de tudo o que não é essencial. E então, quando ela morreu, eu já havia me desprendido, lentamente, de tudo. Já havia dito adeus à graça dela, à inteligência, ao humor, à companhia, à voz. Depois tive que dizer adeus ao espírito dela. E, por fim, ao que restara do seu corpo. E quando ela finalmente morreu, tive a sensação de que havia lançado tudo pela borda do bote, que não ficara nada. Eu fiquei com ela em seu quarto. Abri as janelas para que o quarto se mantivesse frio, era inverno. Me enrolei num xale e fiquei ao lado dela. Esses momentos foram como descer à morte e voltar a sair, e creio que algo se produziu que me mudou fundamentalmente, me fez outra pessoa. Diria que é uma experiência purificadora, que você fica limpa, a dor limpa tudo o que é supérfluo e vai ficando o essencial. E o que fica é o amor que você dá.

Isabel Allende, em entrevista

Há ainda aqueles que desprendem-se muito rápido da própria graça, abandonam a própria inteligência antes da hora. Há quem ignore o próprio humor e esqueça-se da própria companhia. Assim, morre aos poucos. Esquecendo-se e abandonando o que há de essencial em si mesmo.

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