28 de fev. de 2004

4.1.Justificativa


É curioso pensar em todos os seres humanos que passam a vida inteira sem fazer nenhum comentário, nenhuma objeção, nenhuma observação. Não que tais comentários e observações tenham um destinatário ou um sentido qualquer; mas (...) mesmo assim acho preferível que sejam feitos.

Michel Houellebecq

23 de fev. de 2004

Duas medidas


Se houverem dois pesos, haverão sempre duas medidas.

Nesse provérbio eu boto fé.

Que medo e que liberdade. Sobretudo, que imprevisibilidade das coisas, completamente entregues ao acaso.

18 de fev. de 2004

Devaneios dominicais


Dizem que as baratas só possuem três segundos de memória. Se você dá um peteleco numa barata, ela corre, mas logo pára, porque esquece o motivo da afobação.

16 de fev. de 2004

Infeliz compromisso


Havia nela algo como a obrigação de atestar aos outros que havia optado pelo melhor caminho. A atestação que dava-se aos outros, pois ninguém pode enganar a si mesmo. Algo como a renovação da sua auto estima e da sua imagem pública.

- Apenas indo ao baile eu encontrei diversão suficente para a noite de ontem. Eu não precisava de mais nada. Recolher-me aos meus aposentos era mesmo o melhor a se fazer.
- Guarde isso para si, amável donzela. Aos colegas da corte, esse comentário de nada vale. E se, para mim, o insosso baile não trouxe diversão, ah, isso é apenas do meu interesse.
- Desculpe-me, mas eu não o ouvi.
- Desculpe-me também, mas não vou repetir. A propósito, a senhorita sabe que o dia de ontem foi severo para mim. O que, então, a senhorita gostaria de dizer-me, ao expor que se divertiu no baile?

Algo como a renovação da sua auto estima e da sua imagem pública. Estavam, ainda, intimamente relacionadas, afinal.

12 de fev. de 2004

Aleatório


Uma noite qualquer, conversando com um amigo, música alta no fundo.

- Só que ele é muito complicado de se relacionar.
- Quem?
- De se relacionar.
- Ah. Você é muito complicado, eu sei.
- Como assim? Você sabe o quê?
- Ah, você é muito instável, né...


Tudo seria diferente se sempre conversássemos com música alta no fundo. Assim, conversando por meio de palavras ainda mais embaçadas e ambíguas, sempre escutaríamos (por pura escolha) algo mais parecido com o que queríamos escutar. E, diante disso, seríamos mais livres para dizer o que queríamos dizer, ainda que essas palavras soassem completamente fora de contexto.

10 de fev. de 2004

Eternamente


A nossa essência é a luta. Nessa luta, desenvolvem-se e atuam perenemente a dor, a alegria e a esperança. A ascensão, o combate com a corrente antagônica, gera a dor. Mas esta não é um monarca absoluto. Cada passageiro equilíbrio no curso da ascensão enche de alegria todo ser vivo. Mas de dentro da alegria e da dor salta perenemente a esperança de libertar-nos da dor, de expandirmos a alegria. E recomeça a ascensão - a dor - e renasce a alegria e salta uma nova esperança. O círculo jamais se fecha. Não é um círculo; é um redemoinho que está eternamente subindo, alargando-se, girando, desenvolvendo a grande luta.

No meio do redemoinho vamos nós. E ainda que, naufragados na alegria, estejamos momentaneamente livres da dor, a esperança aparece como força maior. Ela leva-nos a abandonar a alegria antiga e dá-nos força para superar qualquer dor. Tudo isso para que nos lancemos ao próximo instante, sempre desconhecido.

A esperança embaça-se, então, a apenas cinco centímetros dos meus olhos. E quando afasto-a do meu rosto, para assim poder vê-la melhor, ela me aparece com outra face. Desaparece, nesse instante, o seu caráter sagrado e inocente. E desprovida da consolidada embalagem, assemelha-se muito à ambição.

Eternamente subindo, alargando-se, girando...

Eternamente.

9 de fev. de 2004

Mover moinhos


Cristina era o tipo de pessoa que olhava para os dois lados antes de arrancar o carro, no sinal. Plenamente capaz de, numa grande roda de conhecidos, perder piadas promissoras só para poupar alguém de pequenos e insustentáveis constrangimentos.

2 de fev. de 2004

Paisagem


- Alô.
- Alô. Quem está falando?
- É Elena.
- Elena, acho que a gente não se conhece e na verdade eu queria mesmo era falar com um amigo meu, mas o telefone dele estava ocupado e o seu estava aqui, anotado no bloquinho... Bom, então eu acho que vou falar com você mesmo, você se incomoda?
(Elena sorri discretamente e não diz nada)
- Elena, sabe quando algumas coisas que antes eram importantes deixam de importar e tudo o que você quer é prosseguir na estrada, calmamente, vendo tudo o que há de bonito na paisagem? E aí você descobre que há muito mais nessa estrada do que você seria capaz de imaginar. E aí você resolve desacelerar um pouco, para que alguns daqueles que ficaram lá atrás se aproximem. E aí você percebe que eles são partes importantes dessa estrada e dessa paisagem. E aí você continua, sem temor algum, por ver lá na frente uma paisagem ainda mais bonita.
- Sei, sim. Esse é você?
- Isso. Eu vejo uma paisagem muito bonita lá na frente, e também ao meu lado. E eu queria ter três ou quatro olhos para poder enxergar mais e enxergar sempre. E enxergar também o que acontece atrás de mim. Mas aí eu me lembro que isso não é possível, e nem por isso eu perco a calma. A paisagem me preenche e me tranquiliza.
- Um dia eu ouvi que paisagem é tudo aquilo que devolve o olhar. Você deve estar apaixonado.(Ele sorri discretamente e não diz nada)

Ele e Elena despedem-se. Os dois colocam o telefone no gancho ao mesmo tempo. E por alguns minutos não tiram os olhos do aparelho.