24 de dez. de 2007

Trajetória


Encontrei-o saindo da adolescência, naquela época em que cada descoberta parece abalar o chão e reconfigurar todo o porvir. Suas palavras costumavam vir soltas e ter endereço certo, ainda que muitas vezes dessem com a cara na porta. É impossível negar que em alguns momentos perdeu o rumo, mas de um jeito ou de outro sempre manteve-se de pé. Hoje as palavras são mais leves, geralmente breves e quase sempre têm planos maiores. O rumo ainda é incerto, mas os passos são firmes e conscientes da importância que têm.

13 de dez. de 2007

Pra sempre


Quando você fica adulto, é pra sempre. A menos que você fique bilionário. Aí você pode bater o pezinho, reclamar e dar piti que tem sempre alguém apavorado pra cuidar de ti.

Rosana Hermann

12 de dez. de 2007

Tradição


Cristiano estava entusiasmado para ser pajem do casamento da prima, mas uma semana antes da cerimônia foi picado por um marimbondo. Como era muito alérgico, ficou vermelho, empolado e um pouco inchado. A prima ficou sem graça de voltar atrás e, com ajuda da mãe do menino, encontrou uma solução para o caso. Cristiano foi o primeiro pajem-ninja de que a cidade teve notícia.

11 de dez. de 2007

Esconderijo


Bianca trabalhava na recepção há meses, mas nunca havia trocado uma palavra com qualquer um dos oitocentos funcionários da empresa. Era tão timída que, para driblar o quadro de aniversariantes e livrar-se dos parabéns de clientes e colegas de trabalho, passava o aniversário inteiro de crachá trocado com a outra recepcionista.

10 de dez. de 2007

Exercício de terminologia


Fetichismo: preocupação direta com aparências superficiais que ocultam significados subjacentes.

David Harvey

6 de dez. de 2007

Aparece



O atleta ganha sua medalha, a gente chora, ele vai pra casa e o vazio aparece. A vida aparece.

Caco Ciocler

5 de dez. de 2007

Eterno retorno


Raquel estudava para os tais concursos públicos de segunda a sábado, o dia todo e às vezes de madrugada. Tudo o que queria na vida era poder largar o emprego no escritório e, quem sabe um dia, largar o ponto de ônibus. Por causa de tanto querer, o dia anterior à prova era sempre uma aflição; uma vez foi parar no hospital devido a uma crise nervosa. Mas assim que recebia a prova se acalmava. Ficava olhando através da janela durante cerca de meia hora, pensando na vida. Uma vez pediu para ir ao banheiro e, chegando lá, encontrou um frasco de creme hidratante sobre a bancada. Não teve dúvidas, passou nos braços e nas pernas, até onde as mãos alcançavam. Foi novamente reprovada no concurso.

4 de dez. de 2007

Vale a pena


Priscila detestava lavar louça e por conta disso havia criado alguns hábitos bem peculiares. Agora a faca que usava para passar manteiga no pão era a mesma que cortava o bife no almoço e fatiava a torta de chocolate, sua sobremesa preferida. A colher do iogurte acabava servindo para os dias de sopa e para tomar sorvete, quando a torta de chocolate chegava ao fim. O mesmo copo servia para água, suco e para a cerveja dos fins de semana. Tudo isso sem lavar nada: deixava os objetos sobre a bancada e pronto, estava pronto. De vez em quando pensava se valia a pena esquecer o gosto de cada coisa pra economizar alguns minutos diante da pia. Pode parecer estranho, mas achava que valia.