10 de dez. de 2006

No bonde das cinco


Ao saltar do bonde de burro, uma meninazinha que estava com o pai lhe pediu um dos chocolates da caixa que carregava na mão. O pai ralhou com ela e pediu desculpas a Florentino Ariza. Mas ele deu a caixa completa à menina achando que aquele gesto o redimia de todo amargor, e acalmou o papai com um tapinha no ombro.

- Eram para um amor que foi para o caralho - segredou-lhe.


Gabriel García Márquez

5 de dez. de 2006

Galheteiros e tapetinhos


Começava a entendê-la. Ela havia abandonado uma vida em nome de outra, muito mais distante do ponto em que estava. Por causa disso precisava mostrar-se, o tempo todo, envolvida naqueles novos valores. Parou de sair por aí, de entregar-se a qualquer um que lhe atraísse. Até parar de beber ela parou. Ela agora era moça de família, ocupava-se com a decoração da casa e as roupas do marido. Gastava todo o seu dinheiro em galheteiros e tapetinhos, insistentemente exibidos mesmo a quem não quisesse vê-los. Interpretava qualquer dorzinha de cabeça como um sinal da gravidez que tanto esperava, que traria a ela a certeza de que os velhos tempos eram mesmo velhos. Jantava com casais de amigos, freqüentava batizados e acompanhava todas as novelas em cartaz. Fazia tudo isso com uma naturalidade admirável, sem despertar suspeitas em ninguém. Mas não adiantava, a gravidez não vinha nunca, e isso começava a deixá-la preocupada.

1 de dez. de 2006

Separações


A vida é cheia de dedos, são eles que juntam e separam as coisas. Os dedos dos outros dóem, mas dói muito mais a ponta dos nossos dedos nos outros. Incomoda o choque entre o meu movimento e o seu, entre um dedo que, descrente, tenta empurrar um corpo convicto.

20 de nov. de 2006

À sua espera


Fátima enxugou as mãos e sentou-se à mesa, em frente à patroa. Ouviu que as crianças estavam crescidas, que o serviço da casa havia diminuído muito, que os tempos estavam difíceis e que, portanto, ela seria despedida. Diante de tantas palavras, Fátima não soube o que dizer. Depois de algum silêncio levantou-se e deu um abraço na patroa, que retribuiu. Sentiria saudades. Fátima não sabia o que fazer depois de cruzar aquela porta. Tinha trinta e oito anos, poucos amigos e pouca família. Ainda tinha muito tempo pela frente e não sabia por onde começar a vivê-lo.

16 de out. de 2006

A escolha


Perceber todas as influências de todos os pontos de todos os corpos seria descer ao estado de objeto material.

Perceber conscientemente significa escolher, e a consciência consiste antes de tudo nesse discernimento prático. (...) Qual a razão especial que faz com que um fenômeno, de que eu era de início apenas o espectador indiferente, adquira de repente um interesse vital para mim?


Henri Bergson

15 de out. de 2006

A costureira


Há mais de trinta anos ela trabalhava para aquela família. Uma vez por mês aparecia para copiar os modelos das revistas, consertar algumas peças e costurar alguns lençóis. Com o tempo passou a vir menos, porque a família tinha ficado pequena. De uns tempos pra cá, passou a não cobrar para fazer os consertos; a costureira ligava, marcava um dia qualquer e vinha. Passava o dia na casa, almoçava com a senhora e fazia questão de realizar alguns pequenos consertos. Mas agora a costureira estava praticamente cega, por causa do diabetes, e o resultado do seu trabalho era cada vez mais detestável. De qualquer maneira, a senhora sentia-se na obrigação de recolher algumas peças de roupa entre os filhos e deixar que a costureira as "consertasse". Eram anos de amizade, afinal. Não lhe custava muito, afinal. Essas eram as respostas dadas pela senhora aos seus filhos, quando eles perguntavam onde é que estava a generosidade daquela relação.

16 de set. de 2006

Mais um dia


Quizá hay días en que no me escuchas nada. Pero también hay otros días en que me contestas. Así que puedo decir en cada momento que incluso cuando no contestas y quizás no escuchas nada, que algo de esto se está escuchando, que no estoy hablando sola conmigo misma, es decir, en el desierto, algo que no podría soportar - por mucho tiempo. Eso es lo que me ayuda a continuar, o sea, a continuar hablando.

¡Anda! ¿Qué es lo que veo? ¡Algo que parece tener vida! ¡Una hormiga! ¡Una hormiga, Willie, una hormiga viva! ¿Dónde se habrá metido? ¡Aquí! Tiene como una pelotita blanca entre sus patas.

Se ha enterrado.


Samuel Beckett

5 de set. de 2006

Decidida


Luíza estava decidida a mudar-se para uma casa num bairro bem tranquilo. Queria um pouco de poesia em sua vida e, convenhamos, na porta daquele apartamento ninguém abandonaria um bebê.

21 de ago. de 2006

Culturas



Fala-se em cultura como se, só pelo seu nome, ela, em si, já fosse positiva. É preciso atentar para o fato de que a cultura se constitui num campo de disputas, de valores conflitantes.

Vera Pallamin

17 de ago. de 2006

Nas suas gavetas


Revirava as gavetas do armário numa busca que enchia o quarto de papéis, retratos e pedaços de coisas que não sabia para que guardava. Um pedaço de fio, um pedaço de foto e um pedaço daquele dia em que descobriu que a vida sempre continua. Encontrou uma carta e pôs de lado, junto com aquela reportagem sobre um amor do passado que havia saído no jornal. Revirava a gaveta como se mais nada existisse além dela. Embaixo de alguns bilhetes, encontrou as cartas daquele jogo. Tentou jogar o jogo, na esperança de conseguir parar de revirar as gavetas e de encher o quarto de papéis, retratos e meias sem par. Mas o antigo jogo não tinha mais graça, insistiria nesse novo: redescobrir-se nas suas gavetas.

16 de ago. de 2006

O corpo maior


Finalmente descobriu o que são, para ele, as boas e as más companhias. Isso foi depois de perceber que são as almas que se acompanham, e não os corpos. Concluiu que as almas querem crescer, querem misturar-se às outras e quem sabe terminar em algum tipo de fusão. Antes de tudo, portanto, é importante que a alma cresça. E isso se dá pela transformação de matéria em espírito. É nesse momento que o outro tem importância decisiva: é fundamental aprender a dar o devido supervalor às coisas que nos aparecem, assim como àquelas que nos acontecem. É preciso aprender a retirar das coisas aquilo que delas faz crescer nossa alma. Melhor se duas almas crescem ao mesmo tempo, diante da mesma coisa. É depois de muito crescer que duas almas podem se misturar. É só depois que as almas se misturam. E se engana quem pensa que isso tudo leva muito mais do que dois ou três minutos.

3 de ago. de 2006

Vida e formas


Há muito tempo queria conversar com ela, mas lhe parecia impossível. Não sabia como se aproximar, como colocar em palavras algo tão delicado. No fim das contas, foi lá e fez. Descobriu que a incapacidade de verbalizar conduz ao ato. E torceu pra que nunca mais precisasse abrir a boca.

25 de jul. de 2006

Defina viver



Esse raio de ofício precisa do tempo todo da gente. Tenho projeto de voltar no fim do ano... Vou pintar mesmo. E se tiver que aguentar um trapézio, não faz mal, já estou de couro duro e não penso vender mais meu tempo para coisas que te estouram a cabeça e aleijam o que tenho de bom.

Carybé

18 de jul. de 2006

Rima pobre


Deveria ser terminantemente probido rimar amor e dor. Anos e anos de uma cultura besta que só faz avacalhar as coisas.

15 de jul. de 2006

A experiência de conhecer


Só depois foi perceber o que havia vivido naqueles dias. Algo como a experiência de viver ou ainda a experiência de conhecer a vida. Porque a vida de que todos falam, aquela a que todos aspiram, só pode ser aquilo. A experiência profunda de conhecer alguém, de explorar outra existência, de abandonar aquela série de coisas que aos poucos conduzem à morte. E conhecer alguém é tão raro, requer uma certa descontração e um certo abandono. Ao conhecê-lo havia inaugurado uma nova vida, iluminada por aquela experiência. A partir de então experimentava outra existência. Como se a vida anterior cedesse lugar à próxima. Como se a partir daqueles dias todas as coisas e todas as pessoas, até mesmo as mais antigas, fossem vividas sob a regência de novos valores. E o fim de semana, depois percebeu, foi o começo da vida.

29 de jun. de 2006

A dança da unidade


O mundo é apenas Um, venci o Dois
Sigo a cantar e a buscar sempre o Um

Se houver passado um dia em minha vida
sem ti, eu desse dia me arrependo

Se pudesse passar só um instante
contigo, eu dançaria nos dois mundos


Rumi

25 de jun. de 2006

Nem por isso deixa de querer


Olhando daqui, parece que ele quer se encontrar. Parece estar com saudades de si mesmo, por sentir-se cada vez mais longe daquilo que acredita ser.

Engraçado. Daqui parece que ele deseja encontrar alguma coisa bem fora de si; alguma coisa capaz de tira-lo do centro e de nele coloca-lo, sempre que for o caso. Soube que ele disse o seguinte: "Quero andar, correr se preciso, de repente me chocar com alguém e conseguir transformar esse encontro numa coisa boa."

E que não lhe falte coragem.

17 de abr. de 2006

O estrangeiro



No estágio da primeira paixão, as relações rejeitam energicamente qualquer idéia de generalização: os amantes acham que nunca houve um amor como o deles; que nada pode se comparar, nem à pessoa amada, nem aos sentimentos por essa pessoa. Uma desavença vem usualmente no momento em que este sentimento de singularidade desaparece da relação. Um certo ceticismo em relação ao seu valor, em si mesmo e para eles, recai sobre a própria idéia de que sua relação, apesar de tudo, apenas realiza um destino genericamente humano; que vivenciam uma experiência que já aconteceu antes milhares de vezes; que, se não tivessem encontrado por acaso esse companheiro em particular, teriam dado a mesma importância a outra pessoa.

Georg Simmel

6 de abr. de 2006

1 de abr. de 2006

Luxo pesado


Porque a consciência excessiva o afasta de qualquer certeza. Porque acreditar na ilusão do outro é mais fácil. Porque quanto mais próximo, mais claro. Porque o bom é sempre uma ilusão, assim como o mau. Porque não há motivo para, diante dessa situação, escolher experimentar o mau. E assim será, enquanto pensar.