25 de dez. de 2003

Flanérie

Era dia de escrever alguma coisa; o prazo havia expirado. Já havia vivido bem os últimos dias. Vivido coisas que sempre lhe renderam boas inspirações.

Foi ao enterro de um pai de família, com filhos adolescentes. Triste, aquilo. Não conhecia o falecido. Lá observou o reencontro de dois irmãos, brigados há décadas, talvez. Emocionante. Todos os olhares se convergiram para o reencontro e o falecido ficou lá, sozinho com a viúva. O olhar dela era fiel. Sua voz, doce e um pouco rouca. Devia estar conhecendo a menopausa, naquela idade. Sua voz traduzia os calores da menopausa, era isso. Ofereceram a ela várias pastilhas, ela não aceitou nenhuma. Nervosa, gritou que não queria pastilhas, e sim o seu marido de volta. Depois pediu desculpas.

Saindo do enterro, havia muita panfletagem. Isso está em todo lugar. Sentou-se à sombra de uma árvore, ali no chão mesmo, para observar a cena. Tinha um lencinho xadrez no bolso, sentou-se sobre ele. Algumas pessoas tristes, outras aliviadas e a moça com os panfletos. A moça ainda conservava alguma beleza. Tinha lá os seus trinta e cinco anos e parecia-se com eles. Vestia-se, portava-se, penteava-se e olhava para as pessoas com o devido peso de uma mulher de trinta e cinco anos. Poderia ter arranjado um emprego melhor, pensava a maioria. Era coisa de fim de semana, mal sabiam eles todos. Por servir a uma causa tão pouco nobre, a mulher desaparecia aos poucos. Ninguém olhava para ela, ela não olhava para ninguém. A viúva também passou reto pela moça. E a moça, pela viúva. Não desejaram força uma à outra, nem nada parecido. Elas não sabiam de nada, afinal. Acabaram os panfletos, a moça esboçou um sorrisinho. Seria aquilo uma falta de respeito? Uma afronta?

A essa altura, ele já saía de debaixo da árvore, e a próxima parada era um atropelamento. As estatísticas apontavam a avenida da Consolação, na altura do número dois mil. Apesar de não confiar em estatísticas, lá estava ele. Foi à banca, comprou uma revista feminina usada, por dois reais, uma oportunidade. Não ligava para revistas temáticas, novas ou usadas, achava que as coisas não mudavam muito. Nem mesmo as notícias. Sentou-se perto de um sinal bastante movimentado. Abria. Fechava. Abria. Fechava. Talvez não fosse aquele lugar. Aquele dia. Estatísticas...

Distraiu-se com uma reportagem sobre a menopausa. Não era interessante, mas a essa altura, distraia-se com qualquer coisa. Opa. Um barulho. Levantou-se, viu um tumulto. Deu uma olhada para o moço da banca, os dois sorriram, deram as mãos e foram juntos assistir ao que havia acontecido. Um atropelamento? Nada! Era batida e com batida ninguém se comove. Na imediata dispersão do tumulto, havia uma grávida. Acompanhou-a com os olhos e lembrou-se de que na revista haviam algumas dicas para uma gravidez mais saudável. Alimentação, exercícios físicos, massagens, oito horas de sono. A moça já devia saber, mas achou de bom tom presenteá-la com a revista. Ela sorriu e deu-lhe um beijinho. O moço da banca buscou outras revistas e deu-as à moça, que sorriu da mesma forma e deu-lhe um beijinho parecido com o primeiro.

Uma buzina do outro lado da avenida. Uma freada, um barulho. Olhou para o moço da banca e disseram juntos que só podia ser atropelamento. Despediram-se da grávida, que já tinha os olhos cheios d'água. Era hormonal, isso. Correu para ver o atropelado. Qual foi a sua surpresa ao ver que a moça da panfletagem estava no meio do tumulto e que agora ela vendia pirulitos vermelhos no sinal. Se ela fosse a atropelada, a surpresa seria menor. A vida tem dessas coisas. Se a atropelada fosse a viúva, aí sim! Aí a surpresa seria muito grande, porque a vida não tem dessas coisas, coisa nenhuma! A viúva já devia estar em casa.

E ele continuava atravessando o tumulto. As pessoas não davam lugar, resistiam como se estivessem no show de seu artista favorito. Gritou então: Licença, eu conheço! Ainda que desacreditadas, as pessoas abriram caminho. Chegando lá, no centro do palco, viu que o atropelado era um cavalo. Não havia alternativa, teve que se jogar sobre o animal e debulhar-se em lágrimas. Era um poeta, afinal. E enquanto chorava, inspirava-se. Alívio instantâneo.

23 de dez. de 2003

A face gloriosa


Quando eu tinha nove anos, ela chegou lá em casa. Nem reparei. Ela tinha vinte e poucos. Veio de São Francisco do Glória, uma remota cidade que numa tarde conheci. Filha de Eunice e Brás. Os seus irmãos eram muitos. Também os seus sobrinhos. Aprendeu muito do que minha mãe tinha a ensinar. Comigo aprendeu ortografia. E os conceitos primários de genética. Com ela, aprendi um pouco do que sou. Temos muito um do outro. Na minha biografia, ela seria inevitável. Ela tinha uma prima mal humorada, uma amiga folgada e carinhosa e uma outra, um pouco mercenária - palavras dela. Moravam na Floresta. Houve um dia em que fui lá. Houve um outro dia em que fomos à missa, na Igreja São José. Depois de assistir ao Mr. Bean. Depois de um longo impasse. Me arrumei todo. Voltamos de ônibus, à noite. Às vezes eu subia na caixa de passar roupa para vê-la, através da janela do seu quarto. Às vezes ela me buscava no colégio. Às vezes meus pais faziam cara feia para a gente. Mas os meus amigos do colégio entendiam bem. A gente descia para a garagem para andar de skate. Às vezes a gente caía. E morria de rir. Aos domingos, ela chegava a tempo de assistir Sai de Baixo comigo. Na páscoa, ela gabava-se do ovo colocante (que você pega e coloca na boca). No Natal, eu dei um duende amarelo para ela. E um rosa para a minha irmã. Depois tomei todos e guardei comigo. Ela disse que um dia me levaria para a sua casa, lá em São Francisco. Lá eu conheceria a sua mãe. E eu dizia que um dia ela conheceria a minha Vó Vina. Nunca aconteceu. Ela comprou uma casa, casou-se e teve uma filha. Tainá. Outro dia ela me pediu o CD dos Mamonas Assassinas de presente. Eu dei. Outro dia ela me devolveu algumas fitas K7 que há muito tempo eu havia dado para ela, "para ver seu eu ainda gostava, que ela tinha enjoado". Eu ainda gostava. A gente se encontra de vez em quando. E às vezes parece que não é mais a mesma coisa. Mas é.

- Reis!
- O quê?
- O capeta que te fez!

- Reis!
- O quê?
- O capeta te fez outra vez!


22 de dez. de 2003

A vida é sonho


É preciso ceder aos encontros e isso é como pisar em areia movediça, em campo magnético. Mas sempre existe a possibilidade de escolha, eu disse sempre.

a) - Eu não te entendo.
b) - Eu te amo.
c) - Eu quero te ver de novo.

- Hour concours! - foi o que disseram os que assistiam àquela história.
- É certo que um está fora - mas isso foi tudo o que se soube.

Naquela hora eram três. Mas, por um instante, ao observar o rumo das coisas, achou que qualquer pessoa poderia ser o grande amor, afinal "todo poder é emprestado". E caso nada daquilo desse certo, isso lhe servia de consolo.

Sobre as noites que salvam os dias. E sobre as noites de distração.

16 de dez. de 2003

Até morrer


As palavras andam supervalorizadas. Às vezes o corpo fica esquecido, e só a boca fala. E só o que sai da boca é recebido pelo outro. Os corpos ficaram mudos. As ações, racionalizáveis e explicáveis. Assim como os olhares. Pés, mãos, cabelos e roupas precisam de igual atenção. Devem ser escutados.

Boto minha mão no fogo como deve ser assim que falam os deuses e os diabos.


12 de dez. de 2003

Esperando você


Esperava pelo grande amor da sua vida. Certa de que ele viria. Era hora. Havia escolhido o vestido adequado. Com o decote adequado. E o sorriso adequado, também. Pôs-se a esperar.

- Bonitíssimo. Inteligente. Sociável. Amável. Adequadamente sincero.

Horas se passaram. Anos, talvez. Chegou um outro. Bonito. Inteligente. Um pouco tímido e arredio. Um pouco sincero demais. E ainda havia a minha presença... Papo vai, papo vem. Pequenas discussões e grandes elogios. Casos engraçados, erros bem humorados, sorrisos gratuitos. Há alguma coisa melhor do que gratuidades? Deu-se também. Ela estava plenamente ciente de que ele poderia não ser o grande amor da sua vida. Poderia não ser a felicidade por que esperava. Mas estavam ali, felizes, surpreendentemente. Planejaram estratégias, fizeram poesia, pensaram em jogos. Trocariam beijos ainda naquela oportunidade. Estavam felizes, os dois, divertindo-se por mim também.

- Que gentileza.
- E vem conosco ou não vem?
- Vamos, vamos sim!

Ela sorria. Um sorriso novo, um sorriso muito maior. Estava pronta para ir. Foi quando chegou o grande amor de sua vida e ela ficou extremamente confusa.

- Bonitíssimo. Inteligente. Sociável. Amável. Adequadamente sincero.

O velho impasse. Já havia adequado-se àquela felicidade a três, um pouco arredia e um pouco sincera demais. Mas sempre há outra felicidade à espera. À espreita. E quando uma interrompe a outra, quando se adianta, quando não há intervalo, não sabe-se o que fazer. Era poético aquilo tudo - outra vez. E quem consegue viver de pura poesia? Da poesia trágica daquele autor? Naquele momento ficaram claras, claras demais, alvíssimas eu diria, todas aquelas possibilidades brancas. Esperavam um pé molhado, uma mão macia, uma cusparada que fosse. Enfim, algo que marcasse nelas a presença de alguém. Naquele caso era a presença dela.

9 de dez. de 2003

Quem


Ele sabia que é vergonhoso não poder dominar o coração. Lágrimas, palavras ternas, gestos desorganizados, familiaridades vulgares, tudo isso eram fraquezas indignas do homem. Nós, que éramos tão unidos, nunca havíamos trocado uma palavra afetuosa. Brincávamos e nos arranhávamos como feras. Ele, o homem fino, irônico, civilizado. Eu, o bárbaro. Ele, controlando, esgotando com naturalidade num sorriso todas as manifestações de sua alma. Eu, brusco, explodindo num riso inconveniente e selvagem.

Um e outro são teu ser. Já não sei mais quem é quem, mas é mesmo essa a questão (relação). E querer resolvê-la, um grande sinal.

- Quantos desses eu conheço...
- Gosto daquela selvageria.

5 de dez. de 2003

Histórias de Zorba


- Que houve com seu dedo, Zorba?
- Eu mesmo cortei.
- Você mesmo? Por quê?
- Uma vez fui oleiro. Adorava esse trabalho. Sabe o que é apanhar uma bola de lama e transformar ela no que você quiser? Isso é que é ser homem: liberdade! Bem, e o dedo me atrapalhava para girar o torno. Estava sempre se metendo nas coisas para estragar meus planos. Um belo dia apanhei uma machadinha...
- E não doeu?
- Como não doeu? Eu não sou de pedra, sou homem, é claro que doeu. Mas estou lhe dizendo, ele me atrapalhava e eu o cortei.

Pus-me a pensar. Amar assim alguma coisa, a ponto de tomar a machadinha, cortar-se e sentir a dor.


4 de dez. de 2003

174


Muitas coisas mudaram em mim depois da morte da minha filha. Foi como uma viagem em que você vai num bote em águas muito agitadas e precisa ir jogando ao mar todo o sobrepeso. Começa a se desprender de tudo o que não é essencial. E então, quando ela morreu, eu já havia me desprendido, lentamente, de tudo. Já havia dito adeus à graça dela, à inteligência, ao humor, à companhia, à voz. Depois tive que dizer adeus ao espírito dela. E, por fim, ao que restara do seu corpo. E quando ela finalmente morreu, tive a sensação de que havia lançado tudo pela borda do bote, que não ficara nada. Eu fiquei com ela em seu quarto. Abri as janelas para que o quarto se mantivesse frio, era inverno. Me enrolei num xale e fiquei ao lado dela. Esses momentos foram como descer à morte e voltar a sair, e creio que algo se produziu que me mudou fundamentalmente, me fez outra pessoa. Diria que é uma experiência purificadora, que você fica limpa, a dor limpa tudo o que é supérfluo e vai ficando o essencial. E o que fica é o amor que você dá.

Isabel Allende, em entrevista

Há ainda aqueles que desprendem-se muito rápido da própria graça, abandonam a própria inteligência antes da hora. Há quem ignore o próprio humor e esqueça-se da própria companhia. Assim, morre aos poucos. Esquecendo-se e abandonando o que há de essencial em si mesmo.

2 de dez. de 2003

Iminência


Na folha em branco que recebe diariamente, resolveu não escrever nada. Resolveu que aquele dia deveria passar mesmo em branco. Deveria entrar para a (sua) história como o dia do seu esquecimento. Um dia para não se lembrar, apenas porque nele nada aconteceria.

Levantou-se sem fazer barulho e, enquanto levantava-se, arrumou a cama. Numa coreografia de lençóis, cobertores e almofadas se organizando. Calçou meias grossas, vestiu uma camisa sem estampa e caminhou cuidadosamente até a porta. Abriu uma fresta. Certificou-se de que estava sozinho. Não estava, havia alguém na suíte. Tomando banho. Cantando alto. De porta aberta. Roupas no chão trilhavam o caminho até o chuveiro.

Seguiria o caminho rumo à cozinha. As meias grossas escorregavam um pouco no chão encerado e mantinham o ambiente plenamente nulo. Suspense. Iminência. Cautelosamente até a geladeira. Em cima dela, pães franceses e um pote de geléia. Para aquele dia, estava bom. Numa prateleira, uma garrafa de suco. Um copo limpo sobre o escorredor de pratos. Estava quase seco. Pães, geléia, suco e copo preparados. De volta à cama. A cantoria continuava na suíte. Fechou a porta com cuidado e rigidez. Antes recolheu duas peças que compunham o caminho no chão. Aquilo lhe agradava.

Ele também não era de ferro, assim como você. Ele também tinha suas perversões. Com quem está no quarto ao lado. Porta fechada e cama arrumada. Sentou-se sobre a cama. Comia em silêncio. As roupas de lado, numa próxima cena. Como uma homenagem. Ficou um pouco tonto e estar sentado na cama provocava-lhe vertigens. Desceu até o chão e levou consigo a garrafa de suco. Poderia ter sido naquele momento.

Guardou-se para outro dia. Deitou-se na cama. Os olhos para cima. Esperando o tempo passar. Caiu no sono. Naquele dia não roncou. Nem se mexeu enquanto dormia. Sonhou livremente, esboçou sorrisos. A respiração manteve-se regular. Acordou naturalmente, sete tempos depois. Abriu os olhos devagar, um tempo depois de acordar. Madrugada. Tudo no devido lugar. Os olhos continuavam para cima. Ajeitou a colcha enquanto levantava-se. Havia sonhado com vitórias, encontros, reencontros e desejos consumados. Resolveu visitar a avó no próximo fim de semana ocioso. E, num dia especial, ligar para seu saudoso amigo. Cairia na terça-feira. Vestiu a camisa. Decidiu cortar os cabelos na semana seguinte. Planejou uma reunião de família para contar-lhes as suas verdades.

Recolheu as roupas, guardou-as numa gaveta vazia. Recolheu os pães e a geléia. Calmamente até a porta. Abriu uma fresta. Ninguém no corredor. Os pés descalços agarravam um pouco no chão encerado. Chegou à cozinha. De volta ao topo da geladeira. Um barulho. Cheiro de shampoo. Uma voz conhecida.

- Aconteceu alguma coisa?
- Nada.

30 de nov. de 2003

Sem rumo


A gente bebe um copo de vinho e o mundo perde o rumo. A alma cresce e desafia Deus para a luta.

Começou a ler um livro em homenagem ao amigo. Visitou o tio e jogou com os primos pós-crianças. Combinou de fazer qualquer coisa no fim de semana com o monte de gente. Associou-se a mais uma locadora de vídeo. Interessou-se pelas novas músicas. Comemorou o dinheirinho surpresa que viria em boa hora. Propôs amor àquela mulher, um dia depois de conhecê-la. Marcou duas reuniões. Fez favores sem pedir nem querer nada em troca. Basta ouvir um agora não para que nada disso faça sentido. Coisa estranha essa vida.

- Você não quer amolações? Então o que quer você? A vida é uma amolação. A morte não. Viver, sabe o que quer dizer? Desfazer a cintura e procurar encrenca. A vida ainda não nasceu, é feita da luz em que são tecidos os sonhos.
- Numa vida cabem todas as possibilidades. Potencialidades. Pontos finais. Escolha entre eles.

Como seria diferente o caminho que escolheria! Encheria minha alma com carne.

- Próximo!

Nas descidas as pedras ganham vida.

É assim que os grandes poetas vêem as coisas pela primeira vez. A cada manhã descobrem um novo mundo novo que eles próprios criam.

Quem sabe outro dia.

27 de nov. de 2003

Auto-retrato


Sou de Belo Horizonte. Dou muita carona. Sempre fui bom em Matemática. Nunca fumei cigarro. Amo chorar. Me canso rápido de algumas pessoas. Sou um espírito antigo. Queria morar numa cidade com praia. Queria acordar mais tarde. Invento histórias. Crio coincidências. Falo firme. Sou muito alto. Sou careca. Amo meus irmãos. Acho a Letícia Spiller a pessoa mais bonita que existe. Gosto de mudar os móveis de lugar. Sou muito organizado. Meu carro é sujo. Tenho ótima memória para sobrenomes. Tenho ótima memória para telefones. Já quis ter olhos verdes. Já tive todos os animais tradicionais de estimação. Queria morar na mesma casa que meus irmãos. Me apaixono rápido. Queria ter menos pêlos. O Nikos Kazantzakis é meu guru. Gosto do que o Stig Dagerman escreve. Adoro ler o que os meus amigos escrevem. Gosto de acordar cedo na praia. Não quero morar longe da minha família. Adoro receber bilhetes e cartas. Já chorei lendo um livro. Gosto de dormir cedo. Não gosto de telefonar para ninguém. Cito muito o Nikos. Tenho uma cicatriz no dedo médio. Adoro dançar. Me considero inteligente. Adoro limonada suíça. Odeio mosquito. Queria desenhar melhor. Minha letra é muito bonita. Já chorei em peça de teatro. Converso muito sobre o passado com a minha mãe. Tenho as palmas das mãos bonitas. Adoro economizar. Gosto de acampar. Adoro maçã. Prefiro coisas de queijo. Presto muita atenção nas aulas. Tenho saudade do colégio. Sinto falta de andar a pé. Tenho muita saudade de amigos antigos. Compro mais discos que livros. Nunca chorei ouvindo música. Já chorei no cinema. Nunca grito com raiva. Detesto que gritem comigo. Dirijo devagar. Avanço muito sinal. Amo flertar na balada. Não tenho televisão no meu quarto. Não acho a Luciana Gimenez burra. Amo fotos. Já chorei em museu. Tenho saudade do meu pai. Adoro sorvete. Como chocolate todo dia. Como pouco. Dizem que sou muito tranquilo. Adoro jogar baralho. Prefiro quem não leva jogo a sério. Não experimento comidas e bebidas caras. Adoro água. Gosto de almofada. Adoro ir à casa das pessoas. Tenho preguiça de fazer massagem. Gosto de lutar. Nunca fui à Disney. Adoro João Pessoa. Gosto de todas as cidades que já conheci. Amo viajar. Sou muito observador. Guardo coisas que as pessoas jogam fora. Enfeito meu quarto com coisas que as pessoas escondem. Adoro olhar a estrada pela janela do ônibus. Amo encontrar pessoas por acaso. Gosto de abraço apertado. Gosto de muitas pessoas sem motivo. Já traí. Não tenho roupa marrom nem bege. Deixo tarefas para a última hora. Não suporto gente que acha que sabe tudo. Gosto de ver mulheres elegantes. Gosto de gente tranqüila. Adoro a Ula e a Carol. Não procuro culpados. Tenho uma curiosidade patológica sobre a vida alheia. Acho as pessoas fascinantes. Já chorei em despedidas. Tenho dificuldade em terminar as coisas.

26 de nov. de 2003

Cíclico


Já há algum tempo se sentia seguro porque tinha alguém que lhe falava sobre tudo e dessa pessoa ele sabia todas as opiniões. Sabia todos os detalhes de uma vida que não era nem mais nem menos extraordinária que a sua, mas só por saber se tornava muito mais interessante. Como preço dessa segurança, tornava-se um pouco vulnerável à medida que também precisava falar da sua vida para esse alguém.

- Do desejo à necessidade. Da próximo à amizade. Relevar a verdade. Revelar a ansiedade. O particular é suspenso. O acaso, abdicado. Sem liberdade, sem atitude. Sua passividade: viva realidade.

24 de nov. de 2003

Devaneios midiáticos


A Hebe precisa ser interditada. Ela parece não entender que qualquer coisa que ela diz - e ela sempre diz qualquer coisa - será ovacionada por todo aquele auditório. Não é a primeira vez que ela diz que deveriam matar alguém, ou que ela mesma o faria. E depois sai numa passeata pela paz. É muita cara de pau.

23 de nov. de 2003

Devaneios midiáticos


Há muito os devaneios dominicais vêm deixando saudades nos leitores desse blog. Depois do post sobre a Gimenez, escreveria algo sobre a Luíza Brunet. Algo breve como: Ela é fantástica, frequenta todos os programas de TV para falar sobre sua família, seus filhos, contar uns casos da época em que era mais jovem. Ela não fala de novos projetos, não se intromete no mundo das idéias. Traz à televisão o mundo da vida, tão fascinante quanto esse outro. Com cuidado, pode-se dizer que ela poderia ser qualquer pessoa, que ela diz o que qualquer pessoa poderia dizer, e isso é fantástico. Outro dia ela disse uma coisa que tenho repetido por aí: As pessoas devem ter a beleza da idade.

21 de nov. de 2003

Soma


A descoberta do inconsciente foi maravilhosa e uma das maiores do século passado. Mas, em tratamento, Freud procurava detalhes no passado, como um detetive. Os problemas psicológicos, para mim, estão no cotidiano.

Roberto Freire

19 de nov. de 2003

A última


Nada para fazer diante do computador. Já havia pesquisado o que queria, inclusive as estréias da semana. Já havia feito aquele favor para seu pai, que nada entendia de computador. Fazer aquele trabalho para a semana que vem seria demais, não estava assim tão disposto. Lembrou-se então daquele que, ao voltar de viagem, seria o seu novo amigo. Já havia decidido aquilo e acreditava que toda pessoa precisa de novos amigos depois de uma longa viagem. Como já estava decidido, não havia mais no que pensar. Revirar as músicas, talvez. E achou aquela música que lembrava-lhe uma amiga daquela época em que nada se interessava por música. Olhou para todos os discos que comprou para agradar a nova amiga. Por sorte e por acaso, aqueles discos também agradavam-no. Lembrou-se daquele dia em que a amiga levou-lhe um disco, que se quebrou dentro da mochila dela. Que pena. Sua vida poderia ter mudado depois de ouvir aquele disco. Sim, era pouco provável, mas ainda assim era possível. Ouviu dizer que a esperança é a última que morre.

13 de nov. de 2003

Despedidas


É certo que todo dia há alguma. Em toda vida. Às vezes nem são percebidas, passam como se nada acontecesse. Como se nenhuma posibilidade ali se anulasse. Em alguns casos, é válida a celebração de um fim (ou de uma interrupção, afinal). As duas partes podem, com algum esforço, continuar em contato. O que incomoda (e às vezes dói) é a consciência da redução do potencial do acaso.

- Gosto da possibilidade de te encontrar por ai, por acaso.
- Uma pena essa possibilidade ter seus dias contados.

10 de nov. de 2003

Por amar


Sempre que beijava, se apaixonava. Sempre queria mais. Acabava se relacionando com cada pessoa inesperada... Surpreendia a todos, e até a si mesmo.

Decidiu que era hora de amar. Na primeira oportunidade, se apaixonou. E fez de tudo para que a paixão fosse das mais bonitas. Forjava surpresas, criava coincidências, inventava bonitas histórias, acreditava em eterno amor. Queria ter uma história pra contar, uma vida bem vivida pra exibir, uma felicidade que fosse incontestável. Ou então queria ser feliz e achava que era assim que se fazia. Não sabia muito bem o que queria, mas decidiu que era hora de amar. Ouviu que um famoso pensador disse que cada um vive na realidade que cria. Resolveu viver um romance com a primeira que lhe apareceu. Abriu mão de algumas coisas e se apaixonou. Estava feito.

- De nada adianta cercar um coração vazio ou economizar alma.

5 de nov. de 2003

Realidade noturna


Sonhos muito reais são assustadores. Se misturam com a realidade, confundem as relações e deixam marcas. Como um pé atrás com alguém que te avacalhou num sonho ou um pé à frente com um outro alguém que te deu bola noutro. Tenho sonhado com a realidade, ultimamente. Sonho que entreguei dois ingressos do show de hoje para uma amiga, que meu irmão chegou de lua-de-mel, que minha professora me deixou fazer prova de segunda chamada porque eu estava doente, que beijei quem eu beijei mesmo, que eu fui a um churrasco de reencontro da minha série do colégio e por aí vai. Hoje à noite vou fazer um esforcinho para sonhar que eu e a Luíza Brunet estávamos na casa antiga da minha avó, quando de repente uma manada de búfalos invade a sala. Então eles sequestram a Luíza Brunet e descem a rua, rumo à igrejinha, onde haveria um culto satânico com a presença do Schumacher. Então minha avó poderia levantar-se da cama e, magistralmente, montar num cavalo e perseguir os sequestradores.

4 de nov. de 2003

Turn my way


I don't wanna be like other people are
Don't wanna own a key, don't wanna wash my car
Don't wanna have to work like other people do
I want it to be free, I want it to be true


De volta à realidade. É bom ser como os outros. Mas é uma pena perceber que, sem trabalho, a vida muda totalmente de tom. Me atrevo a dizer que fica um tom abaixo. Mais sono, menos ritmo, menos disponibilidade. É uma pena perceber a consolidação do trabalho como fim. Bons tempos aqueles em que o trabalho não passava de um meio. Deixa estar.

31 de out. de 2003

Químico


Se você pega uma lente para olhar a água que bebemos, você verá que a água é cheia de vermes, pequenininhos, que você não consegue ver a olho nu. E ao vê-los você não beberá mais água. Não beberá e vai morrer de sede. Quebre a lente e os pequenininhos vermes desaparecerão, e você poderá voltar a beber e se refrescar!

Nikos Kazantzakis

Às vezes, e são quase todas, não vale à pena especular, examinar e repensar as relações mantidas e as pessoas queridas. Se uma relação funciona, se uma pessoa é agradável e constrói, os esforços devem então direcionar-se para a manutenção dessa situação. Nunca para a desconstrução dela. Por ora, penso numa equação elementar: o número de momentos de felicidade que uma pessoa atinge é diretamente proporcional ao número de coisas, pessoas e atitudes de que essa pessoa gosta. Atenção a critérios de relevância rígidos demais.

30 de out. de 2003

Devaneios midiáticos


Dias de febre são, para mim, dias de televisão. Não consigo ouvir música, acho tudo chato e alto. Não consigo ler, as posições ficam ruins de dois em dois minutos e, num dado momento, se esgotam. Assim, meu destino é assistir a televisão e tirar uns cochilos, sem qualquer separação consciente entre as duas atividades. É verdade que todo remédio pesa a balança para a direção do cochilo.

Aqui em casa não tem TV a cabo. E, sobre a programação, tenho alguns comentários que podem interessar a alguém e, com sorte, dividir algumas opiniões.

A Ana Maria Braga continua muito legal e divertida, muito mesmo, que pessoa legal, queria que fosse minha tia.

Depois da Ana Maria Braga é quase impossível assistir TV. Não tenho paciência para desenhos nem para receitas. A Olga eu até acho elegante, mas o programa dela é um lugar em que nada acontece. Talvez esteja lá o tão procurado vácuo perfeito.

Pela maior parte da manhã só há desenhos, receitas e futebol. Eu iria dizer esportes, mas é mesmo futebol o que se vê. Às vezes o Guga, às vezes o Schumacher, de vez em quando uma jogadora de vôlei que migrou das quadras para as praias, mudou de dupla. No mais, é tudo futebol.

A hora dos jornais locais. O Artur e a Isabela dispensam comentários, basta dizer que eles agem como se estivessem na sala de visita, quer dizer, na cozinha da casa deles. E que essa casa deve ficar em alguma cidade com, no máximo, dez mil habitantes. Nunca vi gente tão comadre, o papo nunca sai do micro.

Para falar do Jornal Hoje, tomo as palavras de um amigo: Tenho certeza que a cada vez que assisto o Jornal Hoje meus neurônios entram em decomposição. A Sandra Anemberg é a criatura mais insossa do planeta. Ela tem o carisma de um hipopótamo. Como alguém pode achar possível ser tão simpática assim? É uma idiota. Parei, parei de assistir Jornal Hoje. Nunca mais. No mesmo horário passa o Mundo à la carte no P&A. Muito melhor. Sem dúvida. É um ótimo comentário, mas como não tenho TV a cabo, há também o programa da irmã do Faustão.

Os convidados da Leonor são sempre muito desinteressantes e os assuntos, também. Contudo, ela tem opiniões espertas e piadinhas engraçadas para o horário, além de tirar o jeca do co-apresentador o tempo todo.

Depois do almoço, é hora do programa da Angélica, que é divertido para mim, mas só porque eu sempre assisti novela. E os convidados dos programas da Globo ao menos despertam algum tipo de interesse, geralmente.

Anjo Mau é um bom momento da tarde, fico ansioso por cada cena da Luíza Brunet, mas não me estenderei nesse assunto, que merece um post próprio. Enfim. Já me prolonguei demais.

Resumindo a tarde: a Astrid está muito mudada; a Sônia Abrão precisa contratar uma repórter cujos dentes caibam dentro da boca; o Cabeção é, desde a saída da Bia, a melhor parte da Malhação; Chocolate com Pimenta é leve, divertida, quase cai pro absurdo, um sucesso. O Roletrando tem que continuar. O jornal sensual do SBT também. Assista.

Assistindo Kubanacan, me surpreendi com a Letícia Spiller por lá, mas não entendi o que ela fazia nem o que ninguém fazia naquela novela. A Leonor, irmã do Faustão, falou que também não entende nada. Será que alguém entende? É um desafio, tente numa noite de ócio.

Aqui no blog termino meu dia de enfermo. E fico tão cansado que nem consigo durar até a Gimenez.

28 de out. de 2003

Dias de febre


Dias de febre são como um feriado passado em casa. Entretanto nem os amigos nem a família estão de feriado, o que agrava essa situação. A boca fica com um gosto ruim, os compromissos se resumem ao termômetro e aos remédios de sempre, aquele cobertorzinho se torna o melhor amigo. As pernas ficam pesadas e as pessoas, atenciosas.

Mas ainda na febre há alegria: às sete da noite, no SBT, passa o Roletrando, que agora mudou de nome e de patrocinador. Sempre adorei esse programa, e foi com ajuda dele que aprendi a ler e escrever. Enfim. No final do programa, um senhor de uns sessenta anos ganhou um Vectra e pulou e gritou como um menino. Aí minha mãe disse: "É bom ver as pessoas vibrarem, né?". Achei bonito isso.

Ultimamente tenho pensado que envelhecer pode ser um bom caminho para mim - e para muitas outras pessoas também. Mas seria demais dizer que tenho pressa e que farei o possível para que isso aconteça o mais rápido possível... Vou com calma então, mas certo que o futuro tem lá suas vantagens.

Ontem vi "História Real" de novo. Acho que explica tudo isso.

23 de out. de 2003

Papo de elevador

Foi-se o tempo em que calor era papo de elevador. A coisa anda insuportável. E ainda me disseram que estamos na primavera. Como se não bastasse, aqui em casa ainda me apareceram formigas... Não só na cozinha, como também nos quartos. Que aflição de dormir e poder acordar com uma formiga entrando pelo meu nariz. Melhor nem pensar.
Talvez amanhã pergunte aos meus vizinhos se também apareceram formigas em suas casas, caso encontre algum no elevador. Talvez algum tenha uma receita infalível para exterminá-las. Bom, pra falar a verdade, sou daquele tipo que deixa elevador ocupado passar duas, três vezes. Aqui no prédio, em condições normais, só pego elevador quando está vazio. Minha mãe morre de rir, diz que sou jeca, mas sempre que está comigo adere ao movimento. Ah. Elevador é mesmo muito chato: um tal de olhar pra cima, pra baixo, pro lado, de falar baixinho sobre assuntos impessoais. Prefiro evitar qualquer transtorno até chegar à garagem e guardar minha preciosa energia social para a vida de verdade.

18 de out. de 2003

That thing




Guys you know you better watch out. Some girls, some girls are only about that thing, that thing, that thing. Gilrs you know you better watch out. Some guys, some guys are only about that thing, that thing, that thing.

O engraçado é que eu cantava essa música morrendo de rir, achando que era uma bobagem. Que inocente. Watch out!

17 de out. de 2003


- o que é que faz não saber querer menos, querer por querer?
- sempre por morrer, pra poder viver.
- o que é que faz não saber fazer passar, deixar pra lá e continuar?
- o que é que faz só melhorar com outro lá, no seu lugar?
- sozinho e cá, não faz. não dá mais.

12 de out. de 2003

Devaneios dominicais


- Alô?
- Alô. Nossa, que bom que você atendeu. Tem sido tão difícil falar com você... É que eu queria te encontrar de novo. Será que a gente pode se ver hoje?
- Hum... Adoraria, mas...

... estou me sentindo culpado por ter comido o último pedaço do pudim.
... hoje é folga da secretária eletrônica. Vou substituí-la.
... meu tio fugiu do hospício. De novo.
... como? Não estou ouvindo! Tem alguém aí?
... tenho medo de não saber voltar pra casa.
... quem sabe, talvez, vou pensar, mas só se não chover.
... estou fazendo minha barba. Com pinça.
... não diga mais nada. O telefone está grampeado.
... hoje é a prova final do meu curso de astronauta por correspondência.
... preciso guardar lugar no sofá para minha irmã na hora da novela.
... hoje faz 53 anos que o inventor da batedeira morreu. Estou de luto.
... recebi um telegrama do governo dizendo que tenho 6 horas para deixar o país.
... descobri que Papai Noel não existe. Tenho que devolver todos os meus presentes de Natal.
... faço parte de uma sociedade secreta que tem um encontro secreto marcado numa data secreta. Não posso falar mais.

9 de out. de 2003

She's after my money, like I care




Tô com esse velhinho e não abro. Assim como aquela velha idéia de amor romântico, acho que todo o romantismo foi por água abaixo. As relações devem levar à felicidade, seja como for. Se o velhinho fica feliz pela mulher e a mulher, pelo dinheiro, tudo bem. Que os dois estejam felizes.

Aceite o que lhe dão, mas saiba com que fim lhe foi dado.

Brecht

Às vezes me relaciono com pessoas que gostam mais de mim do que eu delas. Às vezes acontece o contrário. Se o gostar não é o único valor numa relação, tudo fica mais simples e possível. Sempre fui a favor de relações que envolvem interesses, desde que os mesmos não sejam perversos e desde que partam dos dois lados. Aliás, será que relacionar-se com uma pessoa pelo simples prazer de estar ao lado dela, por sua boa companhia e coisa e tal, também não é uma forma de relacionar-se por interesse?

8 de out. de 2003

Cada piscar de olhos


Eu deixei de pensar no que aconteceu ontem, deixei de indagar o que vai acontecer amanhã. O que acontece hoje, neste minuto, é que me preocupa. Eu digo: "Que é que você está fazendo nesse momento?" "Estou dormindo." "Então, durma bem!" "Estou trabalhando." "Então, trabalhe bem!" "Que é que está fazendo nesse momento?" "Estou beijando alguém." "Então, beije bem, esqueça o resto; não existe mais nada no mundo, só esse alguém, meta a cara!"

Tudo deve fazer sentido e dar prazer por si só. Cada atitude. Cada pessoa. Cada olhar. O compromisso com o presente é o único que existe. Tudo o que não se encerra em si deve ser abolido. Essa causa me interessa muito.

5 de out. de 2003

Citação dominical


A vida só é curta se a coloco no patíbulo do tempo.

Stig Dagerman

Glossário
patíbulo: estrado ou lugar onde os condenados sofrem a pena capital.

4 de out. de 2003

26 de set. de 2003

Liberdade e escravidão


Mas a liberdade começa na escravidão e a soberania na dependência. O sinal mais vivo da servidão é o medo de viver. O definitivo sinal de liberdade é o fato de o medo deixar espaço ao gozo tranqüilo da independência. Dir-se-á que preciso de ser dependente para conhecer o gozo de ser livre! É certamente verdade. À luz dos meus atos, percebo que toda a minha vida parece não ter tido por objetivo senão construir o meu próprio infortúnio: sempre me escravizou o que devia tornar-me livre.

Stig Dagerman

É isso. Sinto-me preso ao que achei que fosse me libertar.

24 de set. de 2003

O valor da vontade


Aos vinte anos, a vida de Pedro já foi atravessada por milhares de pessoas. E das milhares, dezenas foram importantes e modificaram a realidade do Pedro, ainda que apenas naquela época ou naquele contexto. Mas isso é o suficiente, e essas dezenas de pessoas são agora inesquecíveis para o Pedro.
Entre as dezenas de pessoas inesquecíveis, há algumas nas quais o Pedro não vê valor algum. E entre essas pessoas, há aquelas que o Pedro queria muito que ainda fizessem sentido. O Pedro queria muito gostar delas e ver novamente nelas o valor que um dia elas, para ele, já tiveram. E será que essa vontade já não é um jeito de gostar? Pedro é qualquer um.

21 de set. de 2003

Devaneios midiáticos


Aos domingos não tem Gimenez, que pena. Durmo mais cedo. Ela é o meu maior devaneio. Minha maior fonte de abstração e de distração. Assim como a própria Gimenez, distancio-me totalmente de tudo o que se passa no programa dela. Outro dia, no programa, quando fazia merchandising do SUPER X CAP (um título de capitalização da Caixa), ela disse: Ah. Seu eu ganhasse no SUPER X CAP, amanhã eu nem vinha trabalhar! Isso é fascinante. Um caso singular na TV. Entretenimento que se assume como entretenimento, que não finge querer mudar o mundo e que não pretende ser levado a sério.

16 de set. de 2003

Memória


Ter um blog, tirar fotos, fazer anotações, guardar ingressos de shows, cartas e bilhetes. Todas essas técnicas têm apenas um grande objetivo. Ampliar a memória humana, que não seria capaz de lembrar de tanta coisa. São para isso também as já antigas (e quase esquecidas, quem diria...) enciclopédias. Um blog retém o que foi pensado há um mês atrás; e não deixa que o que é pensado agora se perca no tempo. Álbuns e mais álbuns de fotos são religiosamente observados para que as férias, os casamentos e os aniversários que assinalam qualquer vida não sejam esquecidos e para que cada detalhe seja preservado. Seja esse detalhe uma pessoa, um lugar, um copo ou um momento.

Tudo o que se quer é evitar o confronto com a efemeridade da vida. É ter livre acesso a cada momento vivido. Que nada passe, que nada seja esquecido então. Os homens da tecnologia, é claro, correm atrás disso e desenvolvem infinitos mecanismos de apreensão do tempo e extensão da memória.

Aí eu penso: como seria bom se também investissem numa forma de restringir a memória humana, de dar a cada um de nós o poder de dominá-la e de apagar as más recordações. Poxa. É chato saber que, a qualquer momento, posso me lembrar de alguma coisa de que não queria me lembrar de jeito nenhum.

11 de set. de 2003

Por acaso


Às vezes o acaso faz falta. A vida anda muito objetiva e apressada e quase que não sobra tempo para "perder tempo". E ter tempo pra perder, pra não se comprometer com nada e deixar o acaso governar é fundamental. Todos os passos da evolução científica caminham para uma vida ainda mais objetiva e terrivelmente dinâmica.

Nunca fui daqueles que fica perambulando por aí, exceto em alguns dias complicados, para os quais perambular é o melhor remédio. Mas, até pouco tempo atrás, eu sempre dava uma voltinha a pé por aí, depois de qualquer compromisso e antes de voltar para casa. Nessas andanças, encontrava gente que não encontraria, descobria eventos dos quais não saberia e via casas, prédios e pessoas que não veria em outra situação. E a cada dia eu experimentava um novo ponto de ônibus, e um novo trajeto até cada um desses pontos. Depois que passei a andar de carro, as coisas se tornaram muito mais objetivas. Saio de casa, estaciono, desço, faço o que tenho que fazer e depois volto pra mesma casa de sempre. Ainda que o que eu tenha que fazer varie bastante, é só lá a minha chance de ter algum contato com o acaso.

Outro dia meu professor falava sobre um possível futuro para a televisão: os programas estarão disponíveis em satélite. Quando quiser assistir a um programa, é só "baixá-lo" através desse satélite. Aí eu penso: e aqueles programas, aquelas entrevistas que pegamos o finalzinho, aqueles seriados que nunca tínhamos visto, aquele filme que a gente vê só um trechinho... Poxa. E o acaso?

No Central do Brasil, a Dora diz que deveríamos andar só de ônibus, porque ele faz sempre o mesmo trajeto. Pra ela, andar de táxi é um perigo. Táxi faz retorno, varia o caminho, sempre pode levar ao engano ou a algum prejuízo. Daí ela pega um táxi ao encontrar o Josué e encontrar na vida dele um jeito de voltar a viver. Seguindo essa metáfora, afirmo com convicção: de vez em quando andar de táxi é muito importante e sem dúvida vale à pena enfrentar os altos custos de uma viagem como essa.

10 de set. de 2003

Que se abre


A mente que se abre a uma nova idéia jamais volta ao seu tamanho original.

Albert Einstein

Complicada essa constatação. Penso se não é hora de parar de abrir nossas mentes. Ou se, um dia, essa hora vai chegar. Sei não. As mentes andam muito esticadas... Vão acabar explodindo ou tornando-se maiores do que os próprios seres humanos. Eu, por aqui, quero continuar sendo maior que a minha mente. Há muito além dela em mim e em cada um de nós, afinal.

2 de set. de 2003

Prioridades


A felicidade universal mantém as engrenagens em constante funcionamento; a verdade e a beleza não são capazes disso. É certo que, cada vez que as massas obtinham o poder político, importava mais a felicidade do que a verdade e a beleza. Entretanto, apesar de tudo, a pesquisa científica irrestrita ainda era permitida. Continuava-se a falar da verdade e da beleza, como se fossem bens soberanos até a época da Guerra dos Nove Anos. Esta os fez mudar a cantiga, não há dúvida. Qual é a vantagem da verdade, da beleza ou da ciência, quando as bombas de antracita explodem em volta das pessoas? Foi aí que a ciência começou a ser controlada. Naquela época, o povo estava disposto a ser controlado. Daria qualquer coisa em troca de uma vida tranqüila. Desde então, começamos a dirigir. Decerto, não foi muito bom para a verdade. Mas foi ótimo para a felicidade. Não se pode tirar alguma coisa do nada. A felicidade tem seu preço.

Esse é um trecho de Admirável Mundo Novo, do Huxley, e retrata essa constante luta entre a verdade e a felicidade. O descontrolado progresso da ciência e da tecnologia parece em nada contribuir para a felicidade. Pelo contrário, gera novas necessidades e vende novas soluções temporárias, que em breve gerarão novíssimas necessidades. O mundo da ciência e da tecnologia funciona como uma empresa, e não como uma comunidade. Todos os avanços são destinados à busca de novos avanços, sem que os "antigos" sejam assimilados por todos os que por eles seriam beneficiados. E mesmo hora de rever se esse é mesmo o caminho que leva à verdade e, caso seja, se a verdade é mesmo mais valiosa que a felicidade.

30 de ago. de 2003

É isso


Ouvi dizer que a gente pode saber que gosta de alguém quando fica feliz com a felicidade desse alguém. E isso traz mais certeza do que o estado em que ficamos tristes com a tristeza desse alguém.

25 de ago. de 2003

Mal-estar


Há algum tempo li um texto chamado Mal-estar na civilização. Eram alguns questionamentos que constatam a dificuldade dos seres humanos em encontrar sentido para sua existência e o mal-estar que isso gera em cada um de nós. Até há pouco, não me lembrava mais desse texto. A mudança aconteceu quando meu professor falava justamente desse mal estar. E que, para sair do inevitável mal-estar (há quem duvide da sua existência?), tínhamos quatro caminhos.

Estranho. Não me lembrava que o texto oferecia soluções... E como eu queria sair de mim nesse momento e ver a cara que fiz. Poxa. Especialmente hoje, naquela manhã em que eu poderia ser definido como a personificação do tal mal-estar... Finalmente eu descobriria uma solução para tanto, e ainda poderia escolher entre quatro caminhos. Era muita felicidade. Meus olhos devem ter brilhado, meu pulso acelerado e, quem sabe, um sorriso eu devo ter esboçado. Enquanto eu soltava fogos de artifício por dentro, meu professor falou os quatro caminhos.

Sexo, drogas, religião e arte. Ih. Logo depois falou o óbvio: que não dá pra fazer sexo o tempo todo, que se drogar o tempo todo também é muito complicado, que seguir cegamente uma religião é muito conformista e pouco humano. Restou a arte, então. À medida que era uma aula sobre a História da Arte, achei essa constatação bastante suspeita. Acho que o caminho é mesmo balancear os cinco pesos: sexo, drogas, religião, arte e mal-estar. São quatro contra um. Poxa. Dá pra ganhar...

23 de ago. de 2003

O silêncio


Foi a primeira coisa que existiu: o silêncio que ninguém ouviu. Quem disse foi o Arnaldo Antunes. E hoje eu tento falar sobre o silêncio. Não falo do silêncio do só, empiricamente produtivo e necessário, mas do silêncio a dois. Ontem ouvi que o silêncio é fértil. E bem possível, pode ser. Há quem se incomode muito com um momento de silêncio, o que torna-o um momento propício para palavras que não seriam ditas no movimento inerte da conversa cotidiana. O silêncio quebra a inércia e impede que embarquemos nela. Ao contrário dos objetos em repouso, a tendência de objetos (humanos) em silêncio não é permanecer em silêncio.

Um dia meu professor disse que a natureza não suporta o vazio. Há sempre uma busca por preencher seus espaços vagos: dentro de um tronco velho, entre duas pedras, num vale... A natureza sempre tenta preencher, seja com um musgo ou uma casa de passarinho. Caixas e garrafas vazias, com o tempo, se enchem de poeira. As pessoas, como parte da natureza, também rejeitam o vazio. Não importa se é um vazio aparente ou se não passa de um estágio do almejado preenchimento. Parece ser sempre necessário estabelecer alguma relação entre duas pessoas. Ainda que seja uma relação de poeira. Eu, por agora, me lembro de uma época em que lidava melhor com o silêncio. Ontem tive dificuldades com o silêncio, mas me surpreendi. Ao invés de poeira, do silêncio nasceu um ninho. Um lugar para crescer e provocar crescimento.

O Nikos diz que o que nos move, na vida, é um grito. Cada um serve de ponte para um grito. Disso eu falo depois. Hoje me lembro que ele acredita no silêncio como o último degrau da vida (ou seja, da síntese). E sobre o silêncio que transcende, ele fala o seguinte: Não porque seu conteúdo seja o supremo, inexprimível desespero ou a suprema, inexprimível alegria e esperança. Nem porque seja o supremo conhecimento que não se digna a falar, ou a suprema ignorância que não consegue falar. Para o Nikos, esse silêncio é sinal de amadurecimento - silencioso, indissolúvel e eterno como o Universo.

14 de ago. de 2003

Determinado


Meu professor contou um caso. Contou que costuma comprar livros no site amazon.com. E que outro dia entrou no site, em busca de mais um livro para a sua coleção, que deve ser enorme. Ao abrir a página, lá estava: Eduardo, seja bem vindo a nossa página. Isso é mesmo coisa estranha. Até para ele. Mas não pára por aí. Em seguida lá estava: Já temos lançamentos na área de Novas Tecnologias e Internet. E a tela se encheu de sugestões. A questão é que naquele dia meu professor queria comprar um romance. E nos contou como foi difícil sair daquela página, que já tinha tantos planos e expectativas para ele. Aí surgiu, na sala, outro caso semelhante: uma colega recebeu uma ligação da farmácia. Na ligação, uma moça oferecia ração para a cadela dessa colega. Segundo os cálculos da farmácia, a ração da cadela já deveria ter acabado. Então minha colega precisou convencer a moça de que ainda tinha ração em casa. Situações complicadas, não? E cada vez mais presentes. Até que ponto isso é comodidade e traz satisfação ao consumidor?

É quando penso se esse tipo de expectativa não está presente só nas empresas. Também está presente, na maioria das vezes, nas pessoas com quem nos relacionamos. É um custo muito grande sair de tudo o que já está determinado para nós. E essa coerência, que pode funcionar como uma muleta em situações complicadas, pode acabar se tornando um limite.

13 de ago. de 2003

É tudo conteúdo


Depois de uma longa tendência de sobrevalorizar a embalagem em relação ao conteúdo, atualmente as coisas se inverteram. Se uma pessoa se preocupa um pouco mais com a embalagem, é logo taxada de superficial. O que ouvi e muito me fez pensar é que a embalagem é tão conteúdo como o conteúdo. Não é só porque está sempre a mostra e todo mundo pode vê-la sem o menor esforço que a embalagem é superficial. E ainda que ela pareça não corresponder fielmente ao conteúdo, o que queremos para a nossa embalagem também faz parte de nós. Tudo o que queremos ser - e também o que queremos parecer - está intimamente relacionado aos nossos valores, vontades e concepções. Embalagem e conteúdo não são, assim, tão separados. Os dois fazem parte de cada um de nós, e têm igual importância.

12 de ago. de 2003

Em circulação


Ontem fui ao banco pagar uma multa de trânsito. Multa que tomei por estacionamento proibido, justo na porta do meu prédio. Eu acho que multas por estacionamento proibido deveriam ser bem mais baratas. Ao parar meu carro num local proibido eu contrario a lei, mas não prejudico ninguém. Excesso de velocidade, carro faltando pedaço ou com luz estragada, dirigir bêbado... Tudo isso pode prejudicar outros carros, pode ter sérias conseqüências... Mas esse não é um post-queixa.

Resolvi escrevê-lo porque gostei de ir ao banco. Percebi, ontem, que preciso ir mais ao banco. Preciso jogar mais baralho com os amigos do meu irmão. Preciso andar mais a pé. Até ir mais ao shopping eu preciso. Preciso conviver com mais pessoas mais diferentes. Não falo de conhecê-las, mas de conviver mesmo. Ver como elas me olham, como falam comigo, como se relacionam. É fundamental sair do lugar, do conforto. Surpreender e ser surpreendido.

Tenho cá meus amigos e não me considero um recluso. Vou à faculdade, ao teatro, a shows e bares. Mas em todos esses lugares vejo pessoas um tanto como eu. Todos nos seus respectivos lugares, por uma mesma causa. Gostei muito de andar na rua e ver cada um na sua vida, com seu objetivo e direção.

Essa é a nova onda. Sair do lugar. Amplia o olhar e é mais simples do que parece.

11 de ago. de 2003

Dia de contradição


Às vezes penso em rejeitar todo o progresso. Quase todo tipo de conhecimento, de ciência, de cultura erudita. Tudo isso é muito vicioso. É um sistema que só sustenta a si mesmo, que só responde às perguntas que propriamente cria. Ou seja, todos os esforços de uma determinada ciência vão em busca de soluções para questões que não existiriam caso não existisse a tal ciência. Eu, que nada sei de astronomia, não me atormento para descobrir um planeta ainda mais antigo do que o que já foi descoberto. Minha irmã, que nada sabe de comunicação, não se preocupa com o poder da mídia de construir realidades, transformando a própria realidade em filme. Minha mãe nunca vai discutir com uma amiga sobre os reflexos do cyberespaço nas relações sociais, e isso em nada lhe trará prejuízo.

Mas se ninguém investir na química e na medicina, as pessoas continuarão morrendo como animais. Se ninguém se dedicar à arte, continuarão vivendo como animais. Algumas coisas se fazem mesmo necessárias, não tem jeito. Enquanto isso, outras parecem-me necessidades de um sistema, sustentado aos trancos e barrancos. É clichê, mas também me é estranho que todos precisemos de um celular. Antigamente ninguém precisava. Não duvido que, em breve, todos precisaremos de um celular que tira foto, tem internet e ainda toca MP3. Onde será que vamos parar? Será que vamos parar?

É óbvio que celular facilita a vida, ô se facilita. Assim como tudo o de tecnológico facilita. Complicado é ter acesso, e lidar com isso. Ter um blog e fazer quem nem me conhece conhecer o que penso me dá muito prazer. Mas viveria numa boa, se não existisse blog. A ciência é bem capaz de trazer conforto e longevidade ao ser humano. É também um grande prazer conseguir entender esse ser humano e suas relações. Mas até que ponto ter consciência é ter capacidade de transformar-se, de transformar o outro? Que ciência é mesmo necessária e traz avanços reais para a vida humana? E qual a outra, que só faz o mundo capitalista funcionar? Não sei se foi bobagem falar de capitalismo. Mas hoje ando meio descrente do saber. Queria ser um atleta do Pan. E nem precisava de medalha.

9 de ago. de 2003

Estranhamento


Estava no meio de uma das minhas excursões intergaláticas, quando minha nave apresentou problemas gravitacionais e terminou por cair em um planeta estranhamente azul. Já tinha ouvido falar desse planeta antes, além de ter estudado um pouco as invenções dos habitantes do mesmo. Mas continuando a história, apesar de ter caído em um planeta azul, a verdadeira superfície em que caí era verde. Estranhamente verde. E estranhamente desabitada. Seria uma área ainda desconhecida pelos habitantes? Pensava que sim, até ver alguns indivíduos moverem-se lentamente em um grupo bastante numeroso para uma determinada direção. Me aproximei sem que eles percebessem. E tratei de tornar a minha nave invisível, para evitar grandes tumultos.

Observei então que os indivíduos pararam e passei a reparar em suas faces. Todos eram extremamente expressivos. Segundo o que eu havia estudado, todos expressavam tristeza. Nunca entendi muito bem, mas diziam em meu planeta que a tristeza é um sentimento - e um sofrimento. Percebi também que quatro daqueles indivíduos carregavam um grande recipiente. Aprendi em meu planeta que os indivíduos que habitavam o planeta azul eram muito apegados aos seus bens. Talvez estivessem se desfazendo de algum bem. Mas não sei porque sentiam tanta tristeza, porque em pouco tempo poderiam adquirir outro bem daqueles. Ou substitui-lo por outro bem de melhor qualidade e maior utilidade. Decidi continuar observando-os. E constatei uma importante evolução daqueles indivíduos: como nós, eles já se vestiam da mesma forma. Os mesmos pararam de se preocupar com moda e estética.

Mas enquanto eu reparava nos costumes daqueles indivíduos, percebi que o recipiente desapareceu. E observei que as faces tornaram-se ainda mais cheias de tristeza. Alguns indivíduos partiram, então. Três ou quatro permaneceram, ainda estavam cheios de tristeza. Os que partiram tinham outro sentimento nas faces. Se não me engano, era o que se chama de alívio. Aquilo que meus antepassados sentiam - sim, um dia já sentimos mesmo em nosso planeta - quando completavam suas missões intergaláticas. Foi o que quase senti naquela hora, se eu soubesse o que é sentir. Eu percebia que tinha presenciado um raro momento. Havia aprendido em meu planeta que os indivíduos do planeta azul se sentiam tristes com a alegria dos outros e sentiam alegria com a tristeza dos outros. Naquele momento, todos estavam tristes. Era realmente um momento especial para eles.

5 de ago. de 2003

O que quer dizer


É impressionante como é complicado fazer as pessoas entenderem o que a gente realmente quer dizer. Ainda quando não consideramos todas aquelas teorias de que cada um vê um vermelho diferente, tem um olhar específico carregado de tudo o que viveu e o fato que cada um define as suas próprias referências de bonito, feio, bom, mau - entre outras. E como se não bastassem essas freqüentes codificações e descodificações do que falamos, ainda tem os meios. Por telefone as conversas são corridas e por e-mail, impessoais e desprovidas de intonação. Papo de comunicólogo? Pode ser.

Mas ainda ressalto uma nova mania: a ironia. Já me parece que quase nada quer dizer o que diz. Tudo tem um sentido maior, às vezes escondido, às vezes bem óbvio. Tudo dá a entender alguma outra coisa. Qualquer conversa, da mais cotidiana à mais elaborada, precisa ser interpretada. Ai, que desânimo. Metáforas, ironias, metonímias e todas essas coisas são fantásticas para a literatura, e são plenamente capazes de enriquecer o nosso cotidiano. Mas quando são demais, a coisa se complica. Às vezes decifrar leva tempo, disposição e os resultados podem decepcionar. É mesmo melhor ser claro, não enfeitar demais. Ou só enfeitar quando tiver certeza de que o outro entenderá. Não entender é bem complicado, e não ser entendido, talvez ainda pior. É por essas e outras que lanço agora a Onda ainda que burra de Contenção da Ironia. E espero tornar-me um expoente do movimento.

O que quer dizer diz.
Não fica fazendo
o que, um dia, eu sempre fiz.

coisa que eu nunca quis.
O que quer dizer, diz.
Só se dizendo num outro
o que, um dia, se disse,
um dia, vai ser feliz.


Paulo Leminski

2 de ago. de 2003

O caminhão nosso de cada dia


Hoje minha mãe chegou aqui em casa cheia de flores. Cheia mesmo. Eram uns oito vasos de flores de muitas cores e tipos. Nossa casa ficou muito mais bonita e muito mais viva. E minha mãe, muito mais contente. Foi quando ela me contou que há uma floricultura ao lado do trabalho dela. Contou-me que a dona da floricultura é muito simpática e deu aquelas flores pra ela, de presente. Me surpreendi e perguntei o porquê dessa boa ação tão aleatória. Aí minha mãe me contou que a dona da floricultura disse que todo fim de semana joga fora meio caminhão de flores. Ela leva algumas pra casa, dá para algumas pessoas queridas e, ainda assim, lhe sobra meio caminhão todo fim de semana. Sem exagero.

Com essa mania de procurar metáforas, pensei: é mais ou menos isso que acontece com as pessoas. Às vezes uma pessoa tem muita coisa boa pra oferecer pras outras, mas por acaso ou por preguiça não encontra quem queira ou aceite. Ela quer rir, brincar, dançar, conversar, discutir, beijar, construir... Mas se não encontra um outro que queira, tudo não passa de um potencial. É claro que não é todo dia que temos flores para oferecer, e que em alguns dias tudo o que temos é um buquê. Outras vezes acordamos com um caminhão inteiro de boas intenções e de boas ações guardadas, mas exigimos que os outros dêem algo em troca por elas. Se ninguém se dispõe, acabamos voltando pra casa ainda cheios de boas intenções e ações potenciais. À noite, sozinhos em nossos quartos, essas potências não nos servem de nada. Aí jogamos tudo fora quando fechamos os olhos e dormimos. No dia seguinte, é possível que já nem nos lembremos do que sentíamos e pensávamos no dia anterior.

Se acreditarmos que nascemos e morremos a cada piscar de olhos, torna-se infinito o potencial de cada pessoa. Ao mesmo tempo, torna-se complicado pensar em quantas possibilidades anulamos. É aí que repito: só depende da gente o destino do caminhão de flores de cada dia. Piegas, não?

31 de jul. de 2003

Aconteceu


Diante de mudanças na vida ou em nós mesmos costumamos pensar: O que foi que aconteceu para que isso mudasse? ou Qual foi a causa disso tudo?. Muitas vezes temos como resposta: Não foi nada. Aí penso: às vezes é assim mesmo. Às vezes as coisas mudam sem que nada de notável tenha acontecido. Tanto dentro como fora da gente, há muita coisa que não cabe no entendimento. Não há explicações, anúncios, sinais, nada disso. Talvez seja bom pensar que nascemos e morremos a cada piscar de olhos. E que a vida só precisa fazer sentido durante cada um desses períodos. Em vez de exigir coerência e buscar um porquê para as coisas, que tal viver o que acontece?

Me lembro de um texto teatral: Um dia eu tinha vinte anos e tudo o que eu queria era ter uma história pra contar. Então a personagem ficava louca atrás de um grande acontecimento que determinasse o início da sua história, um marco inicial para que as coisas começassem a acontecer.

Aí me lembro também de uma música que a Adriana Cancanhotto canta.

Aconteceu
Péricles Cavalcanti

aconteceu quando a gente não esperava
aconteceu sem um sino pra tocar
aconteceu diferente das histórias
que os romances e a memória
têm costume de contar

aconteceu sem que o chão tivesse estrelas
aconteceu sem um raio de luar
o nosso amor foi chegando de mansinho
se espalhou devagarinho
foi ficando até ficar

aconteceu sem que o mundo agradecesse
sem que rosas florescessem
sem um canto de louvor

aconteceu sem que houvesse nenhum drama
só o tempo fez a cama
como em todo grande amor


30 de jul. de 2003

Instinto primário


O que é cultural e o que é natural do homem? Esse é uma discussão bastante freqüente e certamente interminável. Engrosso a turma que acredita que quase tudo o que fazemos está impregnado de cultura. Hora de sentir sono, de sentir fome, de ir ao banheiro. Isso ninguém discute. E vou um pouco mais longe. Na maior parte das vezes, ficamos tristes com o que culturalmente é triste, e o mesmo acontece com a felicidade. Muitas vezes rimos do que é culturalmente engraçado, e com o riso - que já não quer só rir - queremos dizer alguma coisa. Seja que entendemos a piada, que estamos distantes do alvo do riso, que somos superiores e não nos importamos. Outras vezes rimos naturalmente, quando somos surpreendidos por um acontecimento ou por uma resposta inesperada. Aí é riso legítimo, riso que quer rir e mais nada. E como é importante lembrar: há uma enorme distância entre o engraçado e o ridículo.

E tem aquela dúvida sobre a natureza humana, talvez a mais abrangente: o ser humano é bom e a sociedade o corrompe ou é mesmo mau, maquiavélico? Poxa. Essa não me atrevo a responder. Todos falam sobre o quanto as crianças (a princípio, seres com menor taxa de cultura) são cruéis e, afinal, quem não tem um caso desses pra contar? Ao mesmo tempo, as crianças são capazes de atitudes tão nobres. O Nikos fala que tudo é potencialmente de todos e que existe apenas uma grande essência à qual todos tem livre acesso.

E o ódio (leia-se medo) e a violência, serão naturais do homem ou culturais? O Roberto Freire, no Sem Censura, disse que uma pessoa só se torna violenta quando não consegue se aproximar do que ama. Pra mim fez todo sentido. E fico contente ao pensar que, antes da violência, vem o amor. Que seja ele o nosso instinto primário, então.

29 de jul. de 2003

O coraçãozinho


A parte das férias que se passa em casa é mesmo incrível. Veja só a criação desse blog. Além disso, quase que inevitavelmente, acabamos vendo muita coisa que passa na TV. Desde a cara de fuinha das meninas que tomam fora no finalzinho do Fica Comigo até o Te Peguei da Luciana Gimenez. Não há uma distância tão grande entre as duas atrações, mas faltaram exemplos melhores. Enfim, um dia desses, eu assistia uma entrevista com a Paloma Duarte no Vídeo Show. Pra disfarçar, a repórter perguntava sobre a carreira, os projetos, opiniões sobre a TV, preferências e interesses artísticos. Mas estava óbvio que o que ela mais queria perguntar era o estado civil da atriz. No fim da entrevista, veio a tal pergunta. Persisti no canal, afinal essas perguntas seduzem mesmo o telespectador. E veio: Paloma, esse coraçãozinho tem dono? Aí ela disse, segura: Tem. É meu.

Boa lembrança. Cada um é o maior - senão o único - responsável pelo que lhe acontece, ainda que às vezes pareça que não. Para que o tal coraçãozinho pertença a outra pessoa, o titular precisa abrir mão. Enfim, tudo o que recebemos inevitavelmente passa pelo nosso olhar e pelo nosso filtro. É sempre bom lembrar disso. Perguntas idiotas podem gerar boas respostas.

28 de jul. de 2003

O bárbaro


Ele sabia que é vergonhoso não poder dominar o coração. Lágrimas, palavras ternas, gestos desorganizados, familiaridades vulgares, tudo isso eram fraquezas indignas do homem. Nós, que éramos tão unidos, nunca havíamos trocado uma palavra afetuosa. Brincávamos e nos arranhávamos como feras. Ele, o homem fino, irônico, civilizado. Eu, o bárbaro. Ele, controlando, esgotando com naturalidade num sorriso todas as manifestações de sua alma. Eu, brusco, explodindo num riso inconveniente e selvagem.

Às vezes a gente se acostuma com uma amizade ou um relacionamento, e ele se torna muito prático e funcional. Novidades, casos, favores, baladas, encontros eventuais. Tudo funciona muito bem. Mas de vez em quando faz bem trazer à tona toda a subjetividade que existe em qualquer relacionamento. Afinal, não dá pra saber exatamente o porquê de cada amigo ser tão querido. Mas é. Então, sempre vale à pena fazer um esforcinho e, ainda que fora de contexto, dizer ao outro o quanto ele é importante. Pode ser que não mude nada, que só confirme uma certeza já existente. Mas ô. Faça isso e veja como faz bem.

Quem disse o que está lá em cima foi um personagem que se despedia de um amigo. Mais uma vez, quem me contou foi o Nikos.

27 de jul. de 2003

Devaneios dominicais


Que palavra bonita é avenida. Uma palavra que sorri. Se avenida não significasse nada ou significasse alguma outra coisa, minha hipotética filha se chamaria Avenida. Já pensei e discuti muito esse assunto, e nunca me surgiu palavra mais bonita.

Palavras feias são fáceis de se encontrar. Sempre defendo musculatura como a palavra mais feia. Cheia de quebras, não flui na boca e parece até não querer sair. Haja esforço. Não sei se é por parecer e não ser a palavra água, mas alga e algo são outras palavras bastante desagradáveis. (Não, "água" não é uma palavra bonita, mas é uma palavra querida, sobre as quais talvez falarei em outro post). Aliás a letra g prejudica qualquer palavra. Assim como o som de lh. Por exemplo: agulha. Parece uma palavra bonita, é uma imagem agradável; mas, quando bem pronunciada, é fácil perceber o quanto é feia. E chega. Escrever mais de quinze linhas sobre isso pode ser o primeiro sintoma. E tome cuidado, ler também.

26 de jul. de 2003

Desenvolvido


Uma tendência que vejo em você é o temor de encarar toda a seriedade desse trabalho: você experimenta algo como uma necessidade de rir, de fazer pouco, de comentar o que você e seus camaradas executam. É como se quisesse fugir a responsabilidade que sente em relação ao próprio trabalho e que consiste em estabelecer uma comunicação com os outros homens e assumir as conseqüências do que revela.

Já há algum tempo, frases como "não estou me dedicando muito", "estou fazendo tal coisa só para ver no que dá", "não ligo muito pra isso" podem ser ouvidas por todo lado e a todo momento. Em algumas situações não se faz necessário ou é mesmo complicado se envolver ou se entregar totalmente a um projeto. Seja lá esse projeto um namoro, um novo trabalho, um regime, um vídeo, um concurso... Mas diante da crescente freqüência desse tipo de postura, às vezes me pergunto se não trata-se de uma defesa, ou mesmo de conformismo. É claro que não dá pra se envolver por inteiro em tudo o que se faz, mas é fundamental acreditar - e assumir que acredita - em alguma coisa.

A falta de dedicação e a aparente despreocupação em relação a um projeto podem funcionar como boas desculpas para o sempre possível (e sempre aceitável) fracasso. Desculpas que são aceitas socialmente, e também pelo próprio indivíduo. Que levam a uma situação de pleno conforto: se nada é importante e nada faz real diferença, com o que se preocupar? Aí entra uma postura ainda mais nítida. A necessidade de rir e de fazer pouco de quase tudo.

Aula boa é aula engraçada. A pessoa mais admirada? Aquela que não se importa e não se envolve com nada. Que consegue passar sem saber nada da matéria. Que deixa pra depois um amigo um pouco distante ou precisando de uma boa conversa, mas sabe o nome de todas as pessoas da balada.

Na Teoria Política, Calligaris determina duas posturas: "gozar" e "construir". Gozar é ter prazer momentâneo; e construir é algo como investir num estado de prazer. A Teoria Política refere-se, com isso, à relação entre cidadão e pátria. Na vida, enxergo nitidamente essas posturas nas relações entre duas pessoas. É claro que gozar tem seu lugar e seu valor. Ô se tem. Mas tentar construir é estar na vida por inteiro, colocar-se em cheque. É o que me dá sentido.

O trecho em itálico é um fragmento da Carta ao ator D., escrita por Eugênio Barba, precursor da Antropologia do Teatro e orientador de um grupo de atores no qual teatro e modo de vida se misturam. Experimente substituir a palavra "trabalho" pela palavra "vida" no trechinho lá de cima.

25 de jul. de 2003

Acima da verdade

Acima da verdade existe outro dever muito mais importante e muito mais humano.
Nikos Kazantzakis

Alô?
Alô, quem fala?
É o Daniel.
Você é filho do Prof. Eros?
Sim, sou eu.
Ele está?
Não...
Está viajando?
Não, não...
Sei. Sabe quem está falando? Aqui é o Eduardo. Eu fui colega do seu pai na Escola de Guerra, lá em Viçosa. Nós também estudamos o científico juntos... Nós morávamos na mesma república, éramos muito amigos naquela época. Depois cada um foi fazer a sua Universidade... Depois disso nos encontramos poucas vezes. Mas eu fui ao casamento do seu pai, conheci os dois filhos quando nasceram... Nunca perdemos contato. Mas já tem alguns anos que não nos falamos... Você já se formou?
Não, não. O senhor não deve saber, mas depois de dez anos meu pai teve outro filho, que sou eu. Eu tenho 19 anos. O senhor deve estar me confundindo com meu irmão.
Ah, é verdade. O seu irmão é o... Rodrigo. E a mais velha é mulher, né? Já se casaram?
A Vanessa já se casou e tem um filho e uma filha. O Rodrigo vai se casar no ano que vem.
Que bom. E a sua mãe, está boa?
Tudo bem, tranqüilo.
E a sua avó, como está? Quando conversei com seu pai ela estava doente...
Ainda está doente, está velhinha... mas tudo tranqüilo. A situação é estável.
Que bom. Fico feliz. Então, Daniel... é Daniel mesmo, né?
É.
Então diga ao seu pai que o Eduardo de Viçosa ligou. E mande um abraço pra ele.
Pode deixar. Um outro abraço para o senhor...
Foi um prazer falar com você, Daniel. Um abraço pra você também, para os seus irmãos e para a sua mãe. Ela deve se lembrar de mim...
Pode deixar. Até mais, Eduardo. Pra mim também foi um prazer.

Bom. Nessa época meu pai tinha morrido há uns quatro meses. Não sei se preferi ou se não consegui falar a verdade. De qualquer forma, não me arrependo e até me orgulho.

24 de jul. de 2003

Escolha


Às vezes imagino como seria minha vida se minha mãe fosse uma desequilibrada que gritasse o dia inteiro e tentasse me controlar. Se a nossa convivência fosse um inferno e se, por diversas vezes, eu tivesse fugido de casa e dormido por aí. Talvez eu teria mais amigos próximos, conheceria mais mães de amigos e seria alguém mais independente. Talvez eu teria menos dinheiro, por almoçar menos em casa e viajar mais. Poderia beber mais cerveja ou, quem sabe, estar nas drogas. Ou talvez eu me esforçaria mais para arrumar um emprego qualquer que tivesse salário, para o mais breve possível me livrar desse fardo. Talvez eu teria preferido fazer faculdade em Viçosa. Quem sabe eu teria saído de casa aos quinze anos, ido morar na casa de algum amigo por aqui mesmo ou num albergue lá em São Paulo. Aí alguém da MTV me conheceria e eu acabaria me tornando VJ. Também seria possível eu morar na casa de uma tia no interior de Minas ou até numa fazenda. Então eu trabalharia ao invés de estudar e até já estaria noivo. Opa! Vai ver eu já teria um filho. Ou então, o pior: talvez eu ainda moraria com a megera da minha mãe. Aí ela continuaria me sustentando, mas jogaria isso com alguma freqüência na minha cara. Aí eu viajaria menos. Ou estaria no mesmo lugar.

Imaginar é das melhores coisas. Faz lembrar o quanto cada um é livre. Faz pensar em quantas possibilidades moram em cada pessoa. Infinitas. Faz perceber que seguir o caminho mais curto pode levar mais longe, e que o contrário também pode acontecer. Não há regra. Cada momento, e nada além de cada momento, tem muito valor. Nos lançamos ao incerto até mesmo quando a escolha é não se mover. Não tem jeito, jogamos a cada instante todo o nosso destino.

23 de jul. de 2003

É fita


Tenho dois sobrinhos-crianças, Lucas e Marina. Seus pais sempre compraram e alugaram muitas fitas de vídeo para os dois, além de sempre os levarem ao cinema.

- Oi, Marina. O que você fez hoje?
- Hoje eu vi o filme da Xuxa e os Duendes 2.
- Olha. E o filme era legal, Marina?
- Era.
- E como era a história do filme?
- Tinha a Xuxa... que era amiga dos duendes. Tinha a Angélica, que era fada. E tinha o duende... E tinha o Aranha...
- O Aranha? O Aranha não é de outro filme, Marina?
- Não, ele era amigo da Xuxa, do duende... O duende era pai do Aranha.
- Anh... Mas o duende era pai do Aranha? De verdade?
- É verdade... (pensativa) É mentira... (pensativa) É fita.

Que alegria. Uma menina de três anos que já sabe que há diversos degraus entre a verdade e a mentira. Entre eles, a ficção e a tal fita. Fita que não passa de um olhar sobre uma realidade, que não pode ser chamado de mentira nem de verdade.

22 de jul. de 2003

O melhor


Não existe o ódio, só existe o medo. Ô frase forte. Quem disse foi o Drummond. Muita coisa fica mais clara quando se acredita nisso. Entre elas, que só o que ameaça pode ser odiado. Odiamos o que está fora do nosso controle, o que é imprevisível e independe da nossa vontade. Tudo o que tem um poder desconhecido.
... só existe o medo. Aí vem uma pergunta. Do que temos tanto medo? Tanto medo que é capaz de gerar coisa forte feito o ódio? Aí vêm algumas respostas... Medo de morrer. Medo de ser esquecido após a morte. Medo de que ninguém se lembre de nada, de passar batido. Então tudo e todos os que nos ameaçam nessa tarefa são odiados. Tudo por causa do medo de não ser o melhor. Porque durante a vida inteira ouvimos e vemos que só o melhor é lembrado, que só ele tem vida "eterna".
Mas há coisa mais relativa que "o melhor"?

19 de jul. de 2003

Clóvis


Chegando no meu prédio, vi na guarita um novo porteiro. Me aproximei, disse meu nome e meu apartamento, ele me deixou entrar. É precária assim a segurança do meu prédio, fazer o quê? Ao menos é perto da Polícia. Enfim. Ao acabar o processo padrão, o novo porteiro disse, com um sorriso meio sem graça no rosto: "Meu nome é Clóvis. É o meu primeiro dia...". Meu Deus. Quase passei mal. Aí eu disse como pude: "Prazer... Então é você que vai estar aí daqui pra frente..." e dei um sorriso acompanhado por um "Boa noite". Foi o melhor que consegui.

Poxa. Minha relação com porteiros sempre foi complicada. Ou melhor, nunca existiu. Eu nunca soube como me comportar diante deles, e é isso que complica. Na verdade, isso se estende para a secretária do dentista, a faxineira do trabalho, o moço da cantina e por aí vai. Mas com o porteiro do próprio prédio é mais complicado porque ele está lá todos os dias. Não dá pra evitar. E, mesmo assim, é alguém que você pode cumprimentar todo dia e não passar disso. Mas me incomoda pra caramba ignorar as preferências, as opiniões e os problemas de alguém tão presente na minha vida. Dizer aquele "Tudo bem?" e nem parar para escutar a resposta é das coisas mais chatas... Me incomoda de verdade.

Mas hoje vi no Clóvis a esperança de resolver essa situação. Penso até em me arriscar a andar de skate com os meninos do prédio, pra poder passar mais tempo lá embaixo.
Ah. E Clóvis é um nome que me toca de um jeito muito especial. Na mitologia do Carnaval, o Clóvis é o palhaço triste. Aquele que ri no picadeiro e chora na cama, de certa forma como todos nós. Esse nome me faz lembrar que tudo tem um outro lado. E que por trás do sorriso meio sem graça do Clóvis aqui da portaria pode ter uma pessoa encantadora, uma grande força ou um ótimo senso de humor. Enfim, é sempre bom lembrar que há algo de muito humano em todos nós. E que isso é o que mais vale.

O corpo maior


Tal como lutas pelo teu corpo menor, luta também pelo maior. Luta para que todos esses corpos teus se tornem robustos, frugais, preparados. Para que suas mentes se aclarem, para que seus corações palpitem de ardor, bravura e inquietude. Como poderás ser forte, lúcido, destemido, se essas virtudes não galvanizarem por inteiro o teu grande corpo? Como te poderás salvar se não se salvar todo o teu sangue? Um de tua raça que pereça acarretará tua ruína. Uma parte de teu corpo e de tua mente irá corromper-se.

16 de jul. de 2003

Pra viagem


Mas hoje resolvi falar sobre o risco que uma viagem pode se tornar. Não, não falo sobre o mau estado das estradas, de turistas perdidos e assaltados, de acomodações desconfortáveis, banhos mal tomados e afins. Falo sobre o conforto do lar. Conforto que pode se tornar um enorme desconforto nos dias que sucedem uma boa viagem. Ao chegar de viagem, sinto-me como quem começa tudo do zero: desde a posição ideal pra dormir até o retorno ao ciclo de amigos. Tudo requer muito esforço e dedicação.

As coisas que acontecem durante a viagem me parecem mais interessantes e promissoras do que o daqui por diante. Ainda que não haja uma rotina à espera, tudo não passa de realidade. E o que se faz na realidade tem conseqüências e precisa ser bem pensado. Complicado isso de ter que pensar, medir e premeditar.

Já me vi diversas vezes pensando no porquê de viajar fazer tanto bem. Por agora, tenho algumas hipóteses: a imprevisibilidade de cada dia, a disponibilidade para conhecer pessoas e lugares, a presença do novo, a liberdade. E por aí vai. Conclusão? Nem consigo imaginar.

De qualquer forma, me vejo aqui, imóvel e incapaz de me afastar das memórias da minha já saudosa viagem. E acabo ficando nessa imobilidade, tentando evitar a inércia que o cotidiano impõe à minha vida.

Opa. Talvez já tenha uma nova hipótese. Nunca imaginei que fosse me basear naquelas leis da física, mas vamos lá. Em casa, a inércia leva cada um ao movimento de sempre. Movimento inconsciente e confortável, que aceitamos numa boa, mas que é quase como ficar parado. Numa viagem, a "ausência total de forças" leva cada um a uma inércia que paralisa. E ficar parado quando estamos viajando é coisa inaceitável. Nesse momento, cada um se impõe à tal inércia e age. E agir sobre o caminho que as coisas naturalmente tomariam traz a certeza de viver. Traz a certeza de se lançar ao risco constante que faz a vida valer à pena.