25 de dez. de 2003

Flanérie

Era dia de escrever alguma coisa; o prazo havia expirado. Já havia vivido bem os últimos dias. Vivido coisas que sempre lhe renderam boas inspirações.

Foi ao enterro de um pai de família, com filhos adolescentes. Triste, aquilo. Não conhecia o falecido. Lá observou o reencontro de dois irmãos, brigados há décadas, talvez. Emocionante. Todos os olhares se convergiram para o reencontro e o falecido ficou lá, sozinho com a viúva. O olhar dela era fiel. Sua voz, doce e um pouco rouca. Devia estar conhecendo a menopausa, naquela idade. Sua voz traduzia os calores da menopausa, era isso. Ofereceram a ela várias pastilhas, ela não aceitou nenhuma. Nervosa, gritou que não queria pastilhas, e sim o seu marido de volta. Depois pediu desculpas.

Saindo do enterro, havia muita panfletagem. Isso está em todo lugar. Sentou-se à sombra de uma árvore, ali no chão mesmo, para observar a cena. Tinha um lencinho xadrez no bolso, sentou-se sobre ele. Algumas pessoas tristes, outras aliviadas e a moça com os panfletos. A moça ainda conservava alguma beleza. Tinha lá os seus trinta e cinco anos e parecia-se com eles. Vestia-se, portava-se, penteava-se e olhava para as pessoas com o devido peso de uma mulher de trinta e cinco anos. Poderia ter arranjado um emprego melhor, pensava a maioria. Era coisa de fim de semana, mal sabiam eles todos. Por servir a uma causa tão pouco nobre, a mulher desaparecia aos poucos. Ninguém olhava para ela, ela não olhava para ninguém. A viúva também passou reto pela moça. E a moça, pela viúva. Não desejaram força uma à outra, nem nada parecido. Elas não sabiam de nada, afinal. Acabaram os panfletos, a moça esboçou um sorrisinho. Seria aquilo uma falta de respeito? Uma afronta?

A essa altura, ele já saía de debaixo da árvore, e a próxima parada era um atropelamento. As estatísticas apontavam a avenida da Consolação, na altura do número dois mil. Apesar de não confiar em estatísticas, lá estava ele. Foi à banca, comprou uma revista feminina usada, por dois reais, uma oportunidade. Não ligava para revistas temáticas, novas ou usadas, achava que as coisas não mudavam muito. Nem mesmo as notícias. Sentou-se perto de um sinal bastante movimentado. Abria. Fechava. Abria. Fechava. Talvez não fosse aquele lugar. Aquele dia. Estatísticas...

Distraiu-se com uma reportagem sobre a menopausa. Não era interessante, mas a essa altura, distraia-se com qualquer coisa. Opa. Um barulho. Levantou-se, viu um tumulto. Deu uma olhada para o moço da banca, os dois sorriram, deram as mãos e foram juntos assistir ao que havia acontecido. Um atropelamento? Nada! Era batida e com batida ninguém se comove. Na imediata dispersão do tumulto, havia uma grávida. Acompanhou-a com os olhos e lembrou-se de que na revista haviam algumas dicas para uma gravidez mais saudável. Alimentação, exercícios físicos, massagens, oito horas de sono. A moça já devia saber, mas achou de bom tom presenteá-la com a revista. Ela sorriu e deu-lhe um beijinho. O moço da banca buscou outras revistas e deu-as à moça, que sorriu da mesma forma e deu-lhe um beijinho parecido com o primeiro.

Uma buzina do outro lado da avenida. Uma freada, um barulho. Olhou para o moço da banca e disseram juntos que só podia ser atropelamento. Despediram-se da grávida, que já tinha os olhos cheios d'água. Era hormonal, isso. Correu para ver o atropelado. Qual foi a sua surpresa ao ver que a moça da panfletagem estava no meio do tumulto e que agora ela vendia pirulitos vermelhos no sinal. Se ela fosse a atropelada, a surpresa seria menor. A vida tem dessas coisas. Se a atropelada fosse a viúva, aí sim! Aí a surpresa seria muito grande, porque a vida não tem dessas coisas, coisa nenhuma! A viúva já devia estar em casa.

E ele continuava atravessando o tumulto. As pessoas não davam lugar, resistiam como se estivessem no show de seu artista favorito. Gritou então: Licença, eu conheço! Ainda que desacreditadas, as pessoas abriram caminho. Chegando lá, no centro do palco, viu que o atropelado era um cavalo. Não havia alternativa, teve que se jogar sobre o animal e debulhar-se em lágrimas. Era um poeta, afinal. E enquanto chorava, inspirava-se. Alívio instantâneo.

Nenhum comentário: