2 de dez. de 2003

Iminência


Na folha em branco que recebe diariamente, resolveu não escrever nada. Resolveu que aquele dia deveria passar mesmo em branco. Deveria entrar para a (sua) história como o dia do seu esquecimento. Um dia para não se lembrar, apenas porque nele nada aconteceria.

Levantou-se sem fazer barulho e, enquanto levantava-se, arrumou a cama. Numa coreografia de lençóis, cobertores e almofadas se organizando. Calçou meias grossas, vestiu uma camisa sem estampa e caminhou cuidadosamente até a porta. Abriu uma fresta. Certificou-se de que estava sozinho. Não estava, havia alguém na suíte. Tomando banho. Cantando alto. De porta aberta. Roupas no chão trilhavam o caminho até o chuveiro.

Seguiria o caminho rumo à cozinha. As meias grossas escorregavam um pouco no chão encerado e mantinham o ambiente plenamente nulo. Suspense. Iminência. Cautelosamente até a geladeira. Em cima dela, pães franceses e um pote de geléia. Para aquele dia, estava bom. Numa prateleira, uma garrafa de suco. Um copo limpo sobre o escorredor de pratos. Estava quase seco. Pães, geléia, suco e copo preparados. De volta à cama. A cantoria continuava na suíte. Fechou a porta com cuidado e rigidez. Antes recolheu duas peças que compunham o caminho no chão. Aquilo lhe agradava.

Ele também não era de ferro, assim como você. Ele também tinha suas perversões. Com quem está no quarto ao lado. Porta fechada e cama arrumada. Sentou-se sobre a cama. Comia em silêncio. As roupas de lado, numa próxima cena. Como uma homenagem. Ficou um pouco tonto e estar sentado na cama provocava-lhe vertigens. Desceu até o chão e levou consigo a garrafa de suco. Poderia ter sido naquele momento.

Guardou-se para outro dia. Deitou-se na cama. Os olhos para cima. Esperando o tempo passar. Caiu no sono. Naquele dia não roncou. Nem se mexeu enquanto dormia. Sonhou livremente, esboçou sorrisos. A respiração manteve-se regular. Acordou naturalmente, sete tempos depois. Abriu os olhos devagar, um tempo depois de acordar. Madrugada. Tudo no devido lugar. Os olhos continuavam para cima. Ajeitou a colcha enquanto levantava-se. Havia sonhado com vitórias, encontros, reencontros e desejos consumados. Resolveu visitar a avó no próximo fim de semana ocioso. E, num dia especial, ligar para seu saudoso amigo. Cairia na terça-feira. Vestiu a camisa. Decidiu cortar os cabelos na semana seguinte. Planejou uma reunião de família para contar-lhes as suas verdades.

Recolheu as roupas, guardou-as numa gaveta vazia. Recolheu os pães e a geléia. Calmamente até a porta. Abriu uma fresta. Ninguém no corredor. Os pés descalços agarravam um pouco no chão encerado. Chegou à cozinha. De volta ao topo da geladeira. Um barulho. Cheiro de shampoo. Uma voz conhecida.

- Aconteceu alguma coisa?
- Nada.

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