23 de set. de 2004

O próximo passo


Estava sentado, calado, olhando para o horizonte. Olhares piedosos se aproximavam. Era como se gritassem em sua direção, bem perto dos seus ouvidos. Antes mesmo que lhe os olhares se transformassem em palavras e gestos, resolveu dizer alguma coisa, assegurar-se de que não haveria interrupção.

Não me perguntem se estou triste. Se me decepcionei, se alguma coisa aconteceu (prefiro a autonomia de expor-me somente quando me sentir à vontade). Por favor não direcionem, com suas piedosas palavras, a minha cruel atenção a qualquer ponto que me faça sentir mal. Deixem-me iludido, introspectivo e distraído. A distração me conduz a um lugar mais leve, mais pertinente. A realidade me condena, a atenção me persegue.

A consciência me impede de dar o próximo passo.

Deixe as pessoas tranqüilas. Não abra os olhos delas. Se você fizer isso, que vão elas ver? Deixe que continuem sonhando! A menos que, quando elas abrirem os olhos, você possa mostrar-lhes um mundo melhor. Você pode?

20 de set. de 2004

Na minha lista (parte dois)


Donato,

depois de tantos anos, é um pouco difícil começar essa carta. tantos anos sem te ligar, sem nos encontrarmos, sem qualquer tipo de contato. depois de tantos outros anos de convivência diária, feito tico e teco. eu também não entendo qual é a distância que nos separa, talvez seja a distância do tempo. talvez a seja a distância dos passos que demos em direções opostas.

talvez seja justamente por isso que não te procurei durante tanto tempo. eu sempre pensei em fazê-lo, mas sempre achei que seria um pouco sem graça e um pouco sem assunto. sempre achei que nunca seria como antes, que isso era impossível. ainda acho isso, mas estou fazendo uma lista importante e você acabou aparecendo nela. então tomei coragem e escrevi essa carta.

tomei coragem de assumir que algumas pessoas fazem mesmo parte do passado. que algumas pessoas que um dia foram essenciais podem hoje não ser mais. você é essencial nas minhas lembranças, nas minhas referências. mas provavelmente vou continuar sem te ligar, sem te procurar nem nada disso. talvez eu não te ligue nem no dia do seu aniversário (porque na última vez foi meio desconfortável). essa distância nos cai bem. mas não tem jeito, eu não me esqueço de você.

um abraço,

Clóvis

13 de set. de 2004

Homens de verdade

Eis o que é um homem de verdade. Um homem de sangue quente e ossatura sólida, que, quando sofre, deixa correr grandes lágrimas autênticas; quando está feliz, não expõe sua alegria, fazendo-a passar pela peneira da metafísica.

Risos artificiais, previsíveis, incapazes de emocionar ou de repercutir a emoção vivida. O riso e a gargalhada não são as únicas formas de dizer que algo de muito bom acabou de acontecer. Que tal ousar, explorar o caminho da metafísica, transformar essa energia em outra?

8 de set. de 2004

Na minha lista (parte um)


Oi Cássia,

resolvi escrever essa carta porque no sabado assisti a "minha vida sem mim", um filme muito bonito. não sei se você já viu, tomara que sim. o lance é que, num determinado momento do filme, uma personagem resolvia fazer uma lista das coisas que queria fazer antes de morrer. pois é. não sei porque, e nem sei se vou saber, mas durante o filme me lembrei muito de você.

lembrei daquela nossa conversa na praia, do "o que é que a gente tá fazendo com a nossa vida?" (e eu ainda não sei o que é que me prende aqui e não me deixa transformar todos os meus dias em dias como aquele). lembrei daquele dia que andamos pra muito longe e depois descansamos na sombra de um barquinho simpático. lembrei da nossa despedida no aeroporto. do seu sorriso quando me viu parado e sem graça, atrás da pilastra.

eu acho isso tudo muito emocionante. porque a maioria dessas lembranças é de momentos sem palavras, ou em que as palavras eram secundárias. momentos em que outros tipos de ligação, em que outros tipos de comunicação pareciam sobrepor-se às palavras. em que o silêncio fazia bem, dava tranquilidade. em que a mera presença dava mais prazer do que qualquer palavra.

eu acho muito raro e muito bom encontrar pessoas assim. então eu resolvi colocar na minha lista: encontrar com você de novo. resolvi também te contar isso, porque acho que essas coisas fazem bem pra gente, são boas de ouvir e de dizer. não sei como vai ser entre a gente, mas agora é assim e eu gosto. e às vezes eu sinto saudade de você, do seu jeito e das nossas andanças.

um beijo,

Clóvis

4 de set. de 2004

O máximo possível



A história começa com duas pessoas que se gostam muito e que, portanto, se vêem o máximo possível.

Os dois estão juntos há um mês e têm passado a maior parte do tempo dentro de casa, olhando um pra cara do outro. As despedidas diárias são sempre dolorosas, mas é uma dor que eles já conhecem. É uma sensação de morte, de dilaceramento, como se um pedaço fosse arrancado. Por causa disso, os dois regularmente sentem-se no fundo do poço, mas como já estiveram muito lá, sabem que não é o fim do mundo.

A história não termina.