9 de mar. de 2004

Eis nossa obra


Observá-lo era muito fácil: quanto mais alto, mais exposto. Durante anos, todos os seus esforços eram rumo ao alto, todos os seus artifícios. E eram muitos os artifícios e se estendiam a todos. Não havia limite algum. Princípio algum. O fim era bem claro, o tempo todo.

Ele flutuava porque já não havia onde pisar. E muito menos onde se agarrar. Aliás, as suas mãos estavam sempre ocupadas, assim como os seus olhos e a sua mente. Estavam todos a serviço. Em busca de um lugar onde pudesse ser mais visto, ainda que com menos nitidez. Fazendo o que fosse preciso para cativar os outros:

apaixonar-se sempre
amar sempre, a todos
ser bom e generoso, sempre
simpático também
cativante, afinal

Ele parecia descer, mas essencialmente continuava no alto, entre nobrezas, amores, genialidades, honras, realizações. Tudo muito cheio de pompa, de valor. Todos os seus gestos soavam como favores. Tudo descia dele com muito mais força, trazia consigo o peso da gravidade. Isso tornava-o insuportável.

Ao descer, várias vezes apoiou-se em meus ombros. Até o dia em que a minha cabeça não estava lá, nem as minhas pequenas verdades instantâneas.

Ele acaba de cair no chão. Mesmo no chão ele flutua, não é capaz de misturar-se. Está imóvel. Não há, há muito tempo, ninguém perto dele, ninguém que obstrua a minha visão. Assim, continua muito fácil observá-lo: nenhum vestígio de paz por perto.

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